Senhorita Marzipã Gostosa
De que modo vou abrir a janela,se não for doida? Como a fecharei, se não for santa? Adélia Prado
Suspirou enquanto tentava fechar o vestido vermelho justo.
O espelho mostrava uma senhora com ar triste, bem diferente daquela que habitava dentro dela. A de dentro, mais levada, sorria com a fantasia de Mamãe Noel para a festa de despedida do ano da empresa. Ela sempre séria, tão cheia de bom senso, tão coisa normal, tão pouco afeita às festas e confraternizações, era quase uma alien naquela roupa de cara de festa.
O vestido encontrara perdido no armário, debaixo de um casaco de inverno. Sobrara dos desapegos anuais. Aqueles que fazia todo ano e onde tirava tudo aquilo que não usava fazia uns três anos. Uns porque tinham passado da moda, outros porque tinha enjoado. A maioria porque não cabiam mais nela, cujo manequim teimava em subir a cada ano.
Menos o vestido vermelho....
Era um verão de umas duas décadas atrás quando um olhar mais matreiro a seduziu em uma viagem de trabalho.
Uma conexão daquelas que se faz todo dia.
Uma conexão daquelas que não acontece toda hora.
Na mala pequena não mais que roupa de trabalho. Mas o olhar matreiro e levado da despedida cheia de ses e com troca de cartões insinuava algo bem mais picante.
Ao lado do escritório havia uma shopping. Fervilhava de gente, era perto do Natal, época de um daqueles planos que reavivaram a economia, já esquecera qual.
No meio do caminho para o almoço, o vestido.
Era simples. Caimento perfeito. Um pequeno decote deixava seus seios à mostra. Vermelho.
Não pensou muito e embora deixasse ali quase um mês de salário, o encantamento que sentira ao vestir, valiam o investimento.
Estava deslumbrante quando entrou no bar do hotel para reencontrar o olhar matreiro. Agora ainda mais ousado, já pressentindo que os drinques e a conversa a dois seriam preambulo de um outra descoberta, mais tátil e ainda mais gostosa.
Não pensou que seria mais que prazer.
Na verdade não pensou.
E foi-se deixando levar.
Aquele olhar era também bem humorado.
Inteligente o danado.
Mas e além de tudo, sabia ler sua alma.
Era sutil o danado.
O vestido, jogado ao chão do quarto, se fez detalhe.
Foram anos de encontros casuais.
A cada viagem, uma novidade.
A cada ano uma nova magia.
Um novo vestido.
Mas nenhum como o vermelho.
Um dia deixou de viajar.
Os vestidos ficaram perdidos no armário.
Uns foram se apegar à novos encontros entre outras pessoas.
O vermelho foi ficando.
Mania de lembrar.
Sorria agora ao pensar que o corte do modelo fazia com que ainda lhe servisse.
Mais justo um pouco. Mas a senhora de vestido vermelho que lhe olhava de volta teve, por segundo, o lampejo de vida da jovem que comprara aquele vestido.
No Uber foi fazendo as notas mentais do discurso que faria. Seu último ano na empresa.
Aposentadoria.
Entre sorrisos e cumprimentos, mordeu uma maçã de marzipã, enquanto olhava a cidade lá fora.
Amanhã mesmo ia viajar novamente.
O vestido ia junto como na vez primeira.
O olhar ainda matreiro, agora viúvo, a encontrara em uma dessas redes sociais da vida.
Um abraço final de despedida e lá ia ela, de vestido vermelho, mais santa que nunca, abrir janelas pela vida...
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