Entre frestas e o cuco

Entreatos
Entre frestas
Entre sonhos de miragens
Uma vida se passou


O relógio teimava em gritar seu cuco por mais que tivesse tirado a corda. Parecia que tinha vida aquele pássaro ingrato. Devia reconhecer que seu tempo passara, que era hora, mais que hora, de fechar o bico e se recolher no seu ninho. Qual o que. Quanto mais o tempo passava, mais agudo seu tic tac. Mais gritante seu cuco, cuco, cuco....

Vontade mesmo de jogar aquele penante no chão, esquecer que tinha trazido com tanto carinho, no meio da mala, escondido da alfândega, como se crime fosse trazer um cuco histórico de uma loja no meio de um cantão suíço. 

Mais não fosse porque não foi comprado. Foi roubado mesmo. 

Não, não era uma ladra dessas reles de vida à toa. Nem tinha esses apelidos de ladrao rico, cleptomaníaca. Era sim maniaca por aquele homem de pele clara, olhos ainda mais azuis que o céu. Ele sim que era o ladrao. Ele sim que tinha roubado sua paz muitos anos atrás. 

Uma vez só tinham jogado tudo longe e seguido viagem. Era para ser um tempo roubado à vida. Era para ser para sempre no fundo dela. Era para ser aventura na cabeça dele. 

Foi um desastre. 

Não o sexo, não entendam mal. Este sempre foi absolutamente perfeito. Perfeito demais o que nem sempre é bom quando se precisa raciocinar. 

Trepada boa, dessas de alma, corpo, suor, entrega e loucura faz com que o pragmatismo fique escondido em algum lugar onde não possa ser achado. E se for, pode ser postergado. Para ela.
 
Para ele não. 

Passado o prazer, imediatamente ou logo depois do sono, ele voltava à vida. E da aventura sobrou a memória. E o cuco.

Era um relógio da família do hotel onde ficaram. Ela não entendia muito bem, mas o pouco que percebera era sobre uma história de amor proibido que envolvia o tal passarinho. Não podia mais passar ao largo sem sentir o gemido ungido a cada hora. Como se o danado gemesse de saudade do amado ou da amada a cada trinada.

Quando foi embora, o cuca foi junto. Rezou para que ninguém percebesse.

Já tinha percebido que sua história ia ter o mesmo trinado ungido. Embora não logo. Mas era premente.

Não deu outra. Amor que dói vai marcando a alma de forma constante. Uma lágrima aqui, vai ficando maior que o sorriso. Um dia não dá mais. Ou se vai ou se morre.

Escolheu partir. Mas ainda levou o cuco, que tinha essa mania de não esquecer de vez. 

Era apegada. Nem que fosse ao que poderia ter sido.

Tentou amar de novo. Até nesses novos meios digitais. Teve amigos apresentados. Tentou e tentou. Mas sempre o cuco lembrando.

Cuco! Cuco? Cuco...

Dependendo do dia era um gemido diferente. Umas vezes era cansado. Outras era urgente. Outros parecia uma teia de chamados...

Um dia qualquer ia jogar fora aquele cuco. Ia jogar da janela só para ter a satisfação de ver cada pedacinho de sua vida jogada fora se espatifando na rua. Mentira que compressão e gentileza fazem da vida uma estrada elegante. O bom mesmo é sentir raiva, é sentir tensão, é gritar e viver cada pelinho eriçado na pele. 

Até lá ia cada vez mais se envolvendo com aquele som que pensando bem, era o único fio que a ligava à vida.





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