Nenúfar, a Noite dos Tempos e Homo Deus

mergulhei para conhecer-me inversa,submersa
preciso saber se minhas pétalas aguentam
[ser lama
e se meu caule suporta a dor
da luz
Exercício de leitura de mulheres loucas
Cinthia Kriemler



Gosto de ler.
Não é nenhuma novidade para quem me conhece. Gostava de escutar historinhas quando criança, gostava de ler gibis. Devorava livros de história desde sempre. 
E ficção.

Lembro de um que li aos 15 anos. 
Década de 70, tempos de guerra fria e medo das armas nucleares que poderiam matar. Mas não apenas matar pessoas e destruir prédios. Podiam acabar com o mundo. Falavam da célebre frase que teria sido dita por Einstein:

Não sei com que armas a III Guerra Mundial será lutada. Mas a IV Guerra Mundial será lutada com paus e pedras. Albert Einstein
O livro se chamava "A Noite dos Tempos" de um autor francês chamado René Barjavel.  A obra era fascinante aos meus olhos de adolescente que vivia em um mundo todo cheio de nãos. Falava de uma expedição ao Pólo Sul, de uma civilização que teria existido um milhão de anos atrás, de uma capsula do tempo que teria salvo um casal de antigos Adão e Eva, com uma história de amor fantástica e terminando com um dos finais mais impactantes que lembro de ter lido naquela época.

O livro se separou de mim de forma abrupta porque foi emprestado, não por mim, e sumiu.
Ficou na memória o amor de Eleia e Paikan, a civilização em tudo avançada. O colapso.

Muitos e muitos livros depois, romances, técnicos e poesias, me vejo em 2018, em plena era digital, tentando retomar a voracidade da leitura. 
Acabando de ler os três famosos livros de Yuval Noah Harari. O último deles, Homo Deus, me leva à novas compreensões sobre o humanismo e à indagações sobre o futuro do homo sapiens. 
Nós, humanidade.  
  
Em elucubrações sobre épocas que estão vindo em que tudo o que se crê ou aprendeu a crer, pode mudar.
Tempos de não trabalho, de possível renda universal. Dos algoritmos definindo tudo, do tempo de percurso melhor para um passeio até a escolha do melhor parceiro/parceira. 
Poderemos nos tornar descartáveis?

Reunião dos dados que tão graciosamente disponibilizamos sobre nossas preferências, gostos e atitudes, poderão ser usados contra nós? 
Existirá ainda um nós enquanto sinônimo de individuo? 
Haverá espaço para essa coisa chamada de descoberta pessoal em um mundo onde o humanismo deixar de ser valor de troca?
Poderei suportar tanta luz me cegando de compreensão?
Haverá espaço para a poesia que não seja gerada por uma inteligência artificial que abastecida por cálculos matemáticos me imponha que é hora de ler o mais certo para mim?
O mais certo para que eu leia? 

Me lembra minha adolescência.
Também alguém imbuído de algoritmos determinados pela ideologia reinante definia o que eu devia ver, ler ou até pensar.
Ai de quem saísse da linha.
Bailava na curva.

Os tempos de nenúfares digitais serão censores poderosos que escolhem caminhos feitos Deuses que não se pode ousar contrariar?
E aí, no meio do fim da leitura e nas indagações que abriram em mim, me lembro de procurar na web aquele livro de antanho, o que ficou submergido na memória. 
Sim, achei.
Sim, baixei.
Sim, li de um átimo.
Meio corrido que unia lembrança com ânsia de recordar a história.
E eis que:

No mundo perdido de Eleia e Paikan harmonia era feita pela essência universal e pelo estudo preciso das pessoas por meio de exames genéticos, biológicos e morfológicos. As escolhas, inclusive do par perfeito, era feita assim. E a felicidade reinava. As pessoas recebiam de acordo com as suas necessidades e trabalhavam se queriam. Na época do livro isso até poderia cheirar a comunismo, mas hoje, lendo as teorias liberais sobre a renda universal, me parece uma sociedade bastante semelhante à imaginada por Harari...

De duas uma, ou a ficção quando bem escrita realmente é meio feiticeira em prever futuros. 
Ou apenas repetimos os tempos de embates de décadas atrás, com novas roupagens, como aqueles remakes que modernizam filmes que um dia fizeram sucesso, fazendo com que sejam entendidos dentro de uma nova realidade.

Novos tempos nos aguardam.
Grandes mudanças, sem dúvida.
Muito do que acreditamos como certeza hoje, vai ser sepultada muito em breve.
Até se torna compreensível que muitos tenham um desejo nostálgico de volta literal a um passado onde as perguntas tinham respostas e não outras perguntas.
E a poesia?
Mesmo que venha a ser gerada por máquinas extremamente complexas, continuará a existir.
Como a música.
Como a arte.
Talvez criar seja ainda a maior de nossas qualidades como raça que habita este planeta.
Que sejamos então poderosamente influenciados e influenciadores por ela e com ela.  

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