Desabafo

Era a maldita da paciência que faltava.

Não era de hoje. Já tinha mais de década.

Aquela guria que olhava o mundo com olhos de alegria começou a morrer em uma ambulância que corria a noite de sua cidade, meio dividida entre rezar para um Deus para o qual não se ajoelhava ou manter a sanidade para tomar decisões e fazer de conta que a vida seguia seu rumo.

Das pessoas com quem contava para segurar sua mão, algumas vieram. Não todas. Sobrou para ela ser forte.

Dali em diante foi uma rotina de UTIs, médicos, equipes de saúde. Conviveu com parentes e amigos em salas de espera do inevitável. Viu pessoas desistindo da vida e morrendo. Aprendeu a reconhecer o estado de seu parente preso à máquinas, pelo olhar do fisioterapeuta .

Rezou. Rezou com toda a força de sua alma que quando a morte ameaça todas as crenças se voltam para o sobrenatural.

Descobriu que a vida se faz de momentos. Uma noite de sobressaltos, esperando um telefone mas torcendo para que não viesse.

Cada pequena vitória valorizada como um troféu.

E ela se deixando de lado.

Melhoras e recaídas apenas sendo uma preparação para a despedida.

Passou uma década assim. Sempre se esquecendo dela. Quando lembrava ou era forçada a isso, vinha uma nova leva de necessidades alheias e lá ia ela, do jeito que desse, engolindo as lágrimas, engolindo as fraquezas, engolindo os medos.

Não a toa seu corpo sofreu. Sua garganta se encheu de tosses que tentavam gritar para fora toda a sua impotência.

Foi aos poucos perdendo o brilho de sonhar. Esqueceu de quem ela era. Nunca mais um dia tranquilo. Nunca mais ferias para se recuperar. Nunca mais o desejo de pequenos mimos.

Foi se deixando levar.

Um dia a vida foi mais dura e levou um deles.

Tinha sido tanto sofrimento que ela mesma pediu que ele fosse. Pediu não, que não era assim tão desprendida.  Apenas lhe disse para ir porque sua alma tão jovem já não mereceria aquele corpo que ali jazia sem forças.

Jurou que ia cuidar dela. Não dela mesma, mas da outra que lhe dera a vida.

Vem tentando cumprir a promessa desde então. Cada dia mais esquecida dela. Dela mesma.

As forças no limite. As vezes rezando para que a vontade de acabar com tudo não lhe venha antes da outra partir.

No rio um barco cruza devagar. Os carros correm em busca da sobrevivência. E ela? Ela fica.

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