O vestido de noiva



Oh!... O amor...

coisa de menina-moça, moça, velha-menina.
Para muitas, o vestido, o véu...
Foi passaporte para o céu, para outras - pro inferno! 
o fogo ardente extinguiu-se no frio ibernal...
‘Fogueira equívoca’, como dizes bem...
Na lareira...só cinzas, a espera de um bom pau!
Há vestidos de noivas, que são puras mortalhas!
Sonhos anulados, guardados em caixas de presentes,
para trás deixados como que nada...
Aparência do bem...
Transvestido do mal.
Puro engano!
Ato mortal...
(Esther Rogess)



Abriu a caixa. 

Quanta diferença da vez primeira. Quando tão mais jovem e cheia daquela esperança que o amor traz. Umas dezenas de anos atrás, alguns fios de cabelos brancos a menos, dois filhos já adultos que nem eram projeto. Ela tão mais jovem de alma. Amava. Ela e seu parceiro. 

O vestido tinha sido uma extravagância. Custara tão caro, bem mais do que seria prudente naquele orçamento de jovens que iniciam a vida. Jurava para si mesma que só fizera isso pressionada pela família. Mas quando abriu a caixa, o vestido pura magia saltou aos olhos. Era feito de pedacinhos de paixão, tecido com a certeza da vida que se inicia bonita. Era quase um conto de fadas moderno. 

E foi. Durante muito tempo foi crescimento. Foi carinho e parceria. Até que cansou.

E restou de tudo a caixa. Já de mudança para uma nova vida, fazia urgência se livrar do passado. Fotos, lembranças, livros. A casa. A gata. 

E o vestido. 

Abriu a caixa e foi como se uma vida se abrisse com ele. Era atemporal como todas as coisas bem feitas. Ele, o vestido, durara mais que as promessas de amor. 

Fazer o que com ele? 

Deixar no lixo era quase pecado, de tão belo e bem feito. Vender parecia imoral para algo que tanto representara em sonhos de vida. Melhor seria se fosse para outra mulher. 

Olhou de novo a caixa. Tirou para fora e se pôs a analisar com os olhos de hoje aquela peça de ontem. Era bonito o danado. Todo bordado na blusa. Saia em mil drapeados. Quase que poderia usa-lo ela mesma. Não era moderno combinar peças? A parte de cima com uma calça jeans, dessas rasgadas e desbotadas, um salto de equilíbrio e lá iria ela abrir-se aos chamados dionísicos da vida que urgia. A saia já era mais complicado, mas sempre que podia surgir um bom lugar onde bailar, um novo amor para encantar ou apenas alguns momentos divertidos que disso é feita a vida: momentos.

Sorriu para a ideia. Mas não. 

Seu momento era de desapego.    

Deixou que o vestido se aninhasse nos papeis da caixa. Guardou como se fosse um pedacinho de si mesma que merecesse carinho, aquela guria que ela fora e que fazia parte da mulher que se tornara. 

Que a caixa seguisse adiante.

Que fosse embalar outra vida. A dela já estava definitivamente fora das caixas. 

Sorriu e saiu. Que a vida seguisse seu rumo. 
    




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