Olhos tristes de Dora

"minha mãe era triste, tinha um olhar melancólico, perdido ao longe" 



Assim aprendi a conhecer a Dora.

Apesar de tão próxima, minha vó, a mulher que pariu minha mãe e mais sete filhos, sua figura era empalidecida pela imagem do avô. Médico, alemão, mistura de autoridade com ternura, um ser solar que encheu de luz a vida de seus filhos. Mas não a da Dora.

Dos retalhos que fui catando pela vida para traçar a sua personalidade, poucos, muito poucos, me mostram uma mocinha séria, recatada. Uma mulher de olhar duro, quase nada lembrando aquela adolescente quando as maternidades marcaram seu corpo e a lida no campo também. O olhar altivo quando já viúva, trouxe os filhos à uma exposição famosa e se metamorfoseou de novo naquela mulher urbana com quem o Doutor casou.

Doutor. Assim chamava seu marido.

-O Doutor está brincando? quando viu a casa de chão batido onde iria morar no interior. Ela que usava raposas para ir ao teatro. Ela que usava colares de pérolas e andava de carro. De repente, pelo ideal do médico quase sacerdote, foi parar no interior do interior, onde um dos únicos luxos era um rádio que pegava a rádio Belgrano de Buenos Aires. Outro era a Etagére, um móvel fino onde guardava as porcelanas que trouxera da capital.

O resto era cuidar das hortas, providenciar banho e cuidados para os doentes que o Doutor acolhia em casa. Pegar a espingarda para caçar pelos matos. Cuidar dos filhos que o Doutor lhe fazia, quase um por ano. E cuidar dos dois outros filhos que trouxera de herança, viúvo que era já de dois casamentos anteriores.

A Dora nasceu em novembro de 1896. O século já se acabava e na então ainda pequena Porto Alegre as mudanças corriam muito lentamente. As mulheres não votavam, muito poucas estudavam. Seu futuro de menina de classe medianamente abastada não passava longe de um bom casamento. Sua mãe era a famosa Vó Belmira. Esta sim, mais perto de minhas lembranças, não por a ter conhecido, mas pelas palavras sempre repetidas de minha mãe quando eu queria usar logo as roupas que ganhava de presente:

-Pareces a Vó Belmira!!

Eu a ficava imaginando muito coquete, de olhinhos brilhantes, rasgando pacotes e usando anáguas e roupas lindas assim que as ganhava. Bem como eu! Devia ser porreta a tal da Vó Belmira.

Mas a Dora, pouco sabia dela. Se casou em 1915, com 19 anos. Já não era tão moça para os padrões da época. Seu noivo, um médico alemão, viúvo de dois casamentos, com dois filhos na mala. Meu avô. Nascido em 1871, em uma aldeia da então Prússia. Vinte e cinco anos os separavam.

O casamento fora arranjado pela irmã, preocupada pelo futuro da Dora. Nas peças que fui catando depois, pouco consegui saber sobre a sua família. Um recorte de jornal de 1911 anuncia o suicídio de um homem, com faca. Seu nome? O de meu bisavô, pai de Dora. Não posso comprovar se era o mesmo, mas o seu nome não era muito comum: Crescêncio de Deus e Silva.

Daqui deste século fico fantasiando que a menina de 15 anos teve que passar por esse trauma. Sabe-se lá em que condições financeiras ficou a família. Era costume os irmãos homens tomarem conta dos bens e as mulheres que se arranjassem com casamentos. O amor? Esse nem contava muito nessas épocas de sobrevivência. Por que lhes conto isso? Porque uma das últimas peças do porquê os olhos de Dora eram tão tristes, eu mesma vivenciei.

Era final dos anos 60. Eu era pré adolescente e já morávamos em Porto Alegre. A época era tensa, minha avô paterna estava morrendo no interior e esperávamos uma notícia ruim a qualquer momento. Na minha cabeça de criança, isso tudo que vou relatar aconteceu no mesmo dia. Pode não ter sido, a memória prega peças reunindo lembranças marcantes na mesma gaveta.

Nas tardes havia sempre o café lá em casa. Era o famoso café da tarde da Tia Helena. Estavam lá duas tias, irmãs mais velhas de minha mãe, minha irmã que já havia se casado e morava no interior. Foi quando ele chegou.

Um senhor de bastante idade. Imagino pelas contas que devia ter mais de 70 anos pelo relato que nos contou. Para uma piralha de 12 anos, era um ancião. Mas muito bem arrumado. Gravata borboleta, terno e um ar educado. Mas o que mais me marcou e me arrepia até hoje foram as palavras dele:

-Vim conhecer as filhas da Dora. 

Contou que eram namorados, deviam ter uns 16 anos e se amavam. Mas foram separados pela vida, na forma da preocupação da irmã mais velha dela. O senhor, que nunca perguntei o nome, era então um adolescente. Não sei nada sobre ele, mas fantasio que fossem vizinhos, que se olhavam desde meninos, que devem ter brincado juntos pelos regatos e sangas. Ou talvez tivessem se conhecido quando ela ia fazer compras. Passaram meses trocando olhares até reunir coragem para se falar. Eram os dois jovens, a Dora devia ter olhos lindos e sonhos de felicidade para sempre. Aquele senhor quando garoto devia ter sido ainda mais sedutor que agora me parecia. Esse amor que brotava e era tão forte que nunca lhe deixou esquecer a amada. Mesmo décadas depois de uma vida feita para os dois, ainda lhe fez ir em busca das filhas da sua Dora, esse amor podado explicava os olhos tristes de Dora.

Ele, não contente em nos procurar aqui em Porto Alegre, viajou ao Rio de Janeiro, já no incio da década de 70,  para conhecer outra tia que lá morava. Tenho o relato de um primo, o Luiz, que era maior que eu e lembra dos detalhes. Apenas não lhe perguntou o nome. O descreveu assim:
"Ele tinha uns setenta e poucos anos, calvo, cabelos brancos, de aproximadamente 1,68 m de altura, magro, vestindo um terno com gravata borboleta, muito educado, delicado e atencioso. Fez um relato de um namoro que teria tido com a nossa avó Doralice, dizendo que nunca a havia esquecido e que tinha um enorme desejo de conhecer as filhas dela. Devem ter sido muito apaixonados. O namoro talvez do conhecimento só dos dois teria sido interrompido porque a jovem se casaria com o Doutor por gosto da família. "

Em que pese o carisma de nosso avô que deixou muitas e marcantes lembranças que vieram até nós, seus netos que não o conheceram, a história da jovem que teve que abandonar seu amor de juventude, que morreu aos 40 anos de uma septicemia em uma época em que a penicilina não havia sido descoberta, que atirava pelas matas, que era altiva e tinha um olhar melancólico que também marcou todas as lembranças, esta história faz parte de minha herança. 

Os olhos de Dora expressavam coisas que nunca seus lábios puderam falar. E nisso ela não se difere de tantas outras mulheres que guardam suas lágrimas e levam a vida adiante. Doa onde doer.   

Esta história familiar lhes conto como uma forma de resgate da história das mulheres que fizeram a nossa história acontecer. Foram além de seus dramas pessoais, deram o protagonismo aos senhores que lhes couberam. Mas que germinaram outras mulheres que se sentem compelidas a trazer à luz as suas vidas, suas dores, seus amores. Ave Doralice! Em algum lugar deves ter te reunido ao teu grande amor. Sei que se tivessem levado à cabo a sua história, eu não existiria. Nem eu nem uma leva de descendentes que levam no corpo tua carga genética e um tanto de teus sonhos. Obrigada então, Vó que não conheci. Que a tristeza de teu olhar tenha servido para o nosso pudesse sorrir.




       

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