As estrelas se apagam lentamente

Noite. Algumas poucas luzes que brilham aqui e acolá. Poderia ser uma alegoria da minha alma. Aqui dentro também brilham algumas luzes. Poucas.

Era de sensações sua precisão. Nem que fosse daquelas multicoloridas, podres de falsas, tipo sorvete derramado que se esvai e com ele a vontade tanta de comer aquela gostosura que é tão efêmera. 

 Mas como o picolé que se derrete na mão, lambuzando a roupa, os dedos, a vida, também a sua esperança parecia ir se colapsando. Sinais difusos aqui e ali. Uma ruptura eminente, corrigida por esparadrapos que são apenas lenientes. Nada permanentes.

Mas não será a vida esse porvir de momentos sem muito sentido? Quem disse que a linha reta é caminho traçado desde a infância. Não serão as mentes mais confusas e caóticas do que gostariam de admitir?

A julgar pelo que lia e via, sem dúvida. Gente que sempre achou tão inteligente, de repente saia com cada sandice. Ela para os outros devia também parecer assim incoerente. Que de certezas talvez alguma bolha social que se abasteça de dogmas. O resto? Paira na incerteza das nuvens e ideias. 
Tossia.
Tossia.

Voltava a tossir.

De seu pai herdara esse jeito de somatizar impotências. Querências mal queridas. Se ele vomitava o que não digeria, ela tossia todas as suas dores. 

Tossia as solidões, as incompreensões, as coisas que não compreendia. 

Nunca aprendeu a lidar muito bem as negativas. Disfarçava, mas era uma rebelde totalmente sem causa. 

Sua cabeça era uma barafunda sem tamanho. As ideias teimavam em não fazer coerência, as palavras faltavam, logo ela sempre tão rápida em concatenar ideias.

Era como se seu cérebro fosse como o céu daquele conto do Despertar dos Mágicos onde técnicos de informática foram contratados por monges tibetanos para achar todos os nomes de Deus. E quando finalmente terminaram aquela insana tarefa, totalmente sem sentido para eles, olharam para o firmamento para ver as estrelas se apagando, uma a uma...

Nos anos 70 com todo seu misticismo mágico, essas fábulas me encantavam. Foi nessa época que li 100 anos de solidão. E reli. E reli de novo exatamente como faço com a tosse hoje. Li Castanheda, Borges em sua biblioteca. E li Clarice. E suei Clarice. E amei com Clarice. 
Fui Clarice.   

Tão distante desse tempo de hoje em que meus neurônios se revoltam com tanta coisa sem sentido e vão se apagando, um a um, numa vagareza que mais me aborrece do que me entorpece.

Os anos passaram. Nas fotos vejo pedaços de vida que vivi. Pessoas lembram uma que eu nem sabia que fui um dia. Falam de coisas que juro que não disse. Não eu. Mas eles repetem como se reescrever a história dos outros fosse possível. E é.

E já nem sei de onde reunir os retalhos da colcha que me transformei. Há algo em mim que lembra alguém que ousava pensar. Um alguém lá atrás. Uma outra eu.

Essa de agora apenas vê as brechas ruindo e já não sabe para onde correr.

E por isso não o faz.  

Uma a uma as estrelas se apagam. E eu apenas expectadora. 

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