A esposa

Lá vem ele, com aquele seu jeito calhorda de ser, perturbar meu sono eterno. Mas nem aqui, nesse parque, esse homem me deixa em paz.

Sorriu, ou foi a lembrança do ato que movia músculos e transpirava um sentimento, que perpassou por aquela mistura de ossos, carne mumificada e alma. Alma sim. Existia.



Sorriu ao lembrar da jovem que tinha sido. Alegre, de olhar angelical, com uma ingênua vontade de viver. E ela realmente tinha se apaixonado por aquele rapaz de cabelos fartos e escuros. Até esqueceu um arrepio que sentia em certos olhares dele. Era tão trabalhador, diziam. Tão metódico, falavam. Bom partido, bom emprego, vai dar bom pai. Todos aprovaram. Ela também.

No início até que foi bom. Brincaram de casinha, ele trazendo e ela arrumando. Ele era meio desajeitado para amar. Educação, talvez. Com o tempo quem sabe melhorasse, ela pensava moleca. Foi assim até a primeira menina sair gritando do seu ventre. Pela primeira vez se sentiu diferente. Ela tinha gerado uma vida. Mas ele olhou com um olhar que a gelou. Foi rápido, Preocupação, pensou.

Era. Mas de outro modo que ela não desconfiava.

Outras meninas vieram. Tão mais ela em seus cabelos loiros. E ele sempre olhando aquela primeira, a que era a mais parecida com ele. Para ele não.

Nunca falou nada. Antes tivesse.

A menina cresceu. Virou mulher. Foi amar sem papel, sem benção. Teve consequências. Me falou assustada. Deixa que eu resolvo, falei com aquela ingenuidade que não me deixava.

Não deu tempo. Ele soube quando o corpo voou no ar. Seu olhar ao olhar o corpo da nossa menina me gelou. Era dor, pensei. Era, mas não do jeito que eu pensava.

Os anos passaram. Ele cada vez mais cidadão de bem. Eu cada vez mais calada.

Por dentro não. Pensava, ansiava. Queria. Mas nunca faria.

Não eu. Não a mulher ainda viva por dentro, tão esmaecida por fora. A eu que ele transformou. Essa nunca.

A outra, a viva, sim. Essa era safada. Essa gemia e gozava. Ainda mais pensando no seu corpo gosmento. Na sua cara de lobo cansado. Esse merecia levar um bom par de chifres. ele que matara minha menina morena com seu jeito duro de ser.

Em vez de matar a viva, ele matou a morta. Burro! E não contente ainda tirou a vida de um amigo. Mal sabia que a viva deitava com ele em tudo quanto era canto. A morta não.

Não foi preso, o infeliz. Ainda ficou tomando conta das outras meninas. Eu escapava do tumulo de vez em quando para dar uma olhada nelas. Coitadas, dependiam dele. Afinal era uma pessoa de bem, diziam. A bruaca deve ter lhe colocado uns galhos. Boa bisca não era, tinha cara de sonsa, diziam. Até as amigas que eu achava que eram. Algumas de olho no viúvo bem posto.

E agora lá vem ele, com seu andar arrastado e seu olhar de cachorro vira lata querendo atenção. Vai com certeza posar de bom marido, deve ser tática de advogado. Garanto que trouxe testemunhas...

Espera, o que o desgraçado está fazendo. Não são flores o que ele traz. É um papelote. O que andará tramando...

NÃO!!!! Agora entendi.

Mil vezes maldito!!!! Rato, nem para usar uma arma tem coragem!

Nem aqui me deixa em paz!!!!

Vai querer me seguir até no único lugar onde achei que estaria livre dele.


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