Transgressora

Era hora de partir.

Como sabia? Não sabia. Na verdade o partir era mais deveria que querer.

A cabeça sabia. O coração não. 


Dos dias que corriam mansos sabia falar. Da intensidade que margeava seu redemoinho, não.

Era dessas. Calma na aparência. Turbilhão no interior.

Das suas margens sabia seu limite. Das suas enchentes não tinha vazão.

Suas entranhas gemiam surdos lamentos. Das gosmas que nasciam de seus desejos pariam cores e sons. Eram vida.

A vida que teimosamente diziam pertencer ao comedimento. 

Ultraje. Mentiras. 

Urgia nela, dela a necessidade de transbordar. Seria tudo aquilo que não fora ensinada. Adestrada. Amestrada.

Seria autêntica e transgressora. 

Seria foro de liberdade. E que se lixassem os vizinhos. Os maldicentes. Os carentes. Os ausentes.

Ela toda seria presente.

Diria sim aos anseios. Diria sim aos desvaneios.

Seria chuva e represa. Seria os nãos e os sins. Seria as escolhas que nunca fizera. 

Seria.

Vestiu seus sapatos vermelhos. Eram sua marca. Seu ponto de desequilíbrio. 

Desceu as escadas com a maestria dos que sabem onde vão. Seus passos faziam um barulho ritmado, um toc toc elegante e pungente que tocava o assoalho velho como sinfonia que acorda.

Abriu a porta com ousadia. Respirou a força do dia que entrava nela. Olhou o mundo com olhos de primeira vez. A coragem vinda sei lá de onde nela se apossou. 

A rua. 

Deserta. Mas cheia.

Os passos. Firmes mas receosos.

O rumo incerto.

A vida para que dela se apossasse. 

Nua. Com sapatos vermelhos. 

O sol por testemunha. 

O caminho por fazer.

A porta fechada para nunca mais.

Quem sabe? Nem ela. 

E já não importava.    

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