Ela pássaro
Sonhou que era um pássaro.
Naquele dia tudo foi da maneira que sempre foi. Só que não.
Acordou sem pressa. Bocejou profundamente e se espreguiçou feito gata manhosa.
Fez o café cheiroso. Até a pitada de canela colocou no pó para dar aquele sabor especial de coisa amada.
O jornal deixou de lado porque já sabia as notícias que traria. E não eram as que esperava ler.
Não mais.
Não mais a tranquilidade.
Não mais o tempo correndo suave feito chuva no milharal.
Agora tudo era corrido.
Agora tudo era dolorido.
Os ponteiros pareciam correr, doidos. E giravam para trás numa velocidade estonteante.
Décadas se passaram com sofreguidão.
O tempo voltou.
E ela sonhando que era pássaro.
Desses que podiam voar. Voo de sonho doido. Voo de volúpia de vida.
E o tempo voltando.
E ela sonhando.
Dentro dela, milhares de synapses se esfacelando.
As asas soltando uma a uma as penas dolorosamente esculpidas.
Era Ícaro.
Chegou muito perto do sol.
Foi derretendo devagar.
Sonhando que era pássaro.
A janela acenando com uma saída.
O tempo girando ao contrário.
As respostas findando sem perguntas.
Ela deixando de sonhar.
As asas derretidas.
A janela aberta.
Ela pássaro.
O tempo parando.
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