Os instantâneos que tiro na minha cabeça
Minhas caminhadas ao sol tem mais de uma utilidade. Serve para exercitar as pernas e o corpo, um dos hábitos que devemos manter/retomar/criar como forma de ser uma velhinha mais saudável. Serve para repor um pouco da vitamina D. E serve também para desintoxicar do vício da navegação dopaminérgica dos tempos atuais. Saio sem lenço nem documento, como já cantava Caetano Veloso em tempos idos e vividos. Minto, lenço levo porque o nariz teima em pingar nestes tempos frios/quentes/úmidos de nosso inverno/primavera. Mas documentos não.
E nunca celular.
Um pouco por medo de assaltos. Muito por fazer um bem danado à cabeça. Saio olhando as pessoas, as ruas, os detalhes. Crio crônicas/contos/poemas e tiro fotos com o meu olhar/sentimento/percepção.
No meio do caminho uma gramínea florida. Dessas que abundam em nossas árvores e que minha saudosa cunhada chamava de bromélias, as caçando como tesouros e levando para o Planalto Central a cada visita. Eu, que sempre as vi como parasitas, me acostumei a vislumbrar a sua singularidade. No meu caminho, floreiam no chão e nas árvores. Do piso às alturas. E me trazem um simbolismo de tudo o que achamos reles e ordinário, que podem ser extraordinários se assim nosso olhar descobrir suas raridades cotidianas.
Nesse dia em particular, meu olhar vê imagens que me calam como se fossem frames de um filme ainda carente de enredo.
De costas, sentado em um banco, enrolado em um cobertor barato, um homem de cabelos brancos, observa o movimento. Na sua frente uma das mais belas igrejas da cidade. Ao seu lado, um jardim meio mal cuidado. Meu olhar tira um instantaneo que guardarei na memória. Em P&B como exige a potência de tudo o que sinaliza a imagem.
Sigo.
Adiante restos de uma árvore de onde nascem flores de galhos secos naquela beleza singela do renascimento de setembro.
O parque se transveste de cenário para vários grupos. Pessoas idosas em uma caminhada de um plano de saúde. Noutro, aposentados em camisetas indicativas de um encontro também para exercitar o corpo. Jovens caminham ao encontro de outros em outro grupo que me escapa à memória. Pessoas de todas as idades e todas as vestimentas caminham pelos espaços que tanto me trazem memórias. Lembro que em outros tempos, tão distantes, eu criança passeava por ali, toda arrumada em dias de domingo, ainda sem saber o que me esperaria na vida. Mais longe no tempo, são meus pais quase crianças que passam por estes caminhos em uma famosa exposição que homenageava a Revolução Farroupilha. Aquela que perdemos, mas não na nossa narrativa épica.
Somos feitos de narrativas.
Enquanto meu pé direito sente um desconforto que não consigo definir, se um entorse, se um passo mal dado, só sinto que dói ao caminhar, sigo e meu olhar encontra uma cena inusitada: sentado em posição de ioga, na mureta do espelho d'água da fonte, uma pessoa jovem de turbante entre amarelo/laranja/dourado estuda e faz gestos calmos e parece fora do tempo.
Um outro jovem, em uma cadeira de rodas, escreve em um caderno. Um outro corpo, que não consigo definir nem idade nem sexo, dorme ao relente, cercado de pertences que outros descartaram. Enrolado em outro cobertor barato, no meio da capital do orgulhoso estado que um dia lutou por ideias de liberdade.
Liberdade para quem?
O céu se transveste de azul e barulhos da cidade que funciona a margem de tudo o que acontece em seus espaços. Pessoas caminham/correm/param. Eu sigo.
Meus olhos continuam tirando fotos que só eu vou lembrar. As cores e as luzes estão perfeitas. O ninho de joões de barro no peito da estátua afrontando o sol e a lei. As placas inexistentes em totens que ficam vazios, lembrando que a cidade e a sociedade pertence a muitos, e muitos nada tem. E rapinam.
Rapinam os de cima e os de baixo. Poucos pagam.
A cidade que tem um parque que homenageia a antiga luta tem seus crimes. Banais e bárbaros.
E tem seus habitantes com passos apressados e insurgentes.
Um amigo me alcança e me surpreende. A solitária observante em seus instantâneos mentais, passa a ser apenas mais um pessoa que conversa e toma suco de abacaxi abaixo das árvores.
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