O vaso chinês e as águas que subiam
O vaso chinês e as águas que subiam
Olhou apreensiva os degraus da escada. A água subia rapidamente e, pelos cálculos da progressão, logo chegariam ao segundo andar da residência. Lembrou dos anos de trabalho e do sonho de construir uma casa segura, tão diferente da pequena casinha de madeira onde tinha começado sua vida de casada. Moravam em Canoas, bairro Rio Branco. Um bairro aparentemente seguro e longe de rios e açudes. Era zona baixa, mas o sistema de proteção de enchentes feito pela cidade após a grande enchente da década de 60 a mantinham protegida. Isso ela imaginava até esse dia.
Tinha vindo do interior e conseguido um trabalho de doméstica na capital. Seu marido tinha quase a mesma trajetória. Jovens que abandonavam a vida sofrida no interior do Rio Grande do Sul para tentar a vida em Porto Alegre. Tinham sido anos de muito trabalho mas haviam conseguido reunir um patrimônio que os deixava em segurança agora que já estavam aposentados. Idosos? Sim, pela nomenclatura oficial já tinham ultrapassado a cota dos sessenta. Mas ainda eram saudáveis e tinham energia para trabalhar e cuidar do pequeno neto que a alegria dos dois. Seus dois filhos já eram formados, trabalhavam em bons empregos e rompiam uma história familiar de agricultores.
Toda a sua história passou em sua mente, enquanto via a água subir, inexoravelmente. Sentia um misto de terror e impotência.
Enfrentara muita coisa em sua vida. Trabalho, perdas, doenças. Tudo com uma tenacidade aprendida com uma linhagem feminina que enfrentava tudo de frente. Tentava manter essa calma neste momento em que as águas subiam.
Tinha ouvido que seria um acontecimento ambiental sem precedentes. Quando começou a chover se assustou, mas nunca poderia ter a dimensão do que poderia acontecer. Chegou a acolher pessoas em sua casa, achando que estariam seguros. Eram dez pessoas na casa, seis idosos. No máximo a água poderia entrar de casa. Chegou a subir os eletrodomésticos. Foi precavida e subiu documentos e aqueles bens que, mais que valor monetário, tem valor de coração. Mas esqueceu do vaso.
O vaso chinês, ganho de sua antiga patroa, boiava na frente de sua casa.
Já tinham passado uma noite assustadora. Eram dez pessoas reunidas no segundo andar de sua casa. Seis idosos. Uma cachorrinha também idosa. Sua filha, que tinha sido retirada de sua casa m outro bairro com barco na madrugada, já estava a salvo e tentava desesperadamente contatos com as equipes de resgate. A enchente que alagava vários bairros de Canoas (RS) era a maior já vista no estado. Ela ouvia gritos de socorro das pessoas. Via atônita barcos, botes e jetskis passando com velocidade na sua rua. Seria uma Veneza tupiniquim com ares de tragédia. Via as pessoas sendo resgatadas e que faziam sinal de força para eles enquanto a água subia, degrau a degrau. Vários barcos não conseguiram se acercar da casa porque as águas eram altas, mas não tão altas como o muro que fizeram. Ironicamente o que sempre fora segurança, hoje era empecilho.
Uma rede de solidariedade se formou entre a população civil. A defesa civil com seus heroicos voluntários fazia o que podia, mas não era apenas o seu bairro atingido. Grande parte do estado estava em emergência climática. Quem podia ia ajudar em turnos de 24 horas nos centros de triagens para separar e entregar as doações que chegavam sem parar. Quem tinha barcos e botes se dirigia aos locais onde as águas chegavam aos telhados. Muitas pessoas e animais passavam as noites em telhados, alguns sem alimento nem água. Idosos, crianças e doentes que precisavam de socorro imediato. Viu um bote feito de garrafa pet e lona. Tudo era válido para ajudar.
As horas passavam e o dia terminava sem um sinal de esperança. As baterias dos celulares eram poupadas porque a energia tinha sido cortada um dia antes, assim que as águas chegaram. Estavam no limite do desespero, tentando acalmar os mais ansiosos dentro do segundo andar da casa cercada de águas que não paravam de subir.
Foi quando viu o vaso. Não um qualquer. O seu vaso chinês. Ele boiava ereto nas águas a frente de sua casa. Não conteve um grito: Meu vaso! Mas se resignou. O que estava perdido, perdido estava. Era sina. Não soube discernir quanto tempo tinha passado quando olhou de volta para os degraus para ver a água subindo. Foi quando viu o vaso, que tinha feito meia volta, entrado novamente na casa e se acercava dela na escada. O seu vaso voltava para ela como um raio de esperança. Fez um gesto desesperado e conseguiu pegá-lo. As pessoas ao redor não entenderam o seu empenho. Ela menos ainda quando constatou que os papeis e o incenso dentro do vaso estavam secos. Nem uma gota de água. Era como se ele mostrasse que era possível sobreviver intacto à tragédia.
Uma das pessoas, a vizinha que tinha sido acolhida, propôs que fizessem uma oração. Foi com a fé dos sobreviventes que apertou as mãos de todos e rezou. E rezou mais ainda quando, só, foi guardar o vaso no armário. Não tinham passado 40 minutos de quando o viu boiando que ouviu gritos. Um bote se aproximava. Era o socorro que chegava.
Mãos amigas, voluntários que arriscavam suas vidas para salvar outras. Foi com alívio que deixou sua casa, seu abrigo, sua até ali segurança. Foi levada até terra ainda não alagada. Uma multidão oferecia lanches, conforto, uma energia de solidariedade que trazia uma réstia de conforto para tantos que tanto tinham perdido.
Depois chorou. Águas que brotaram do fundo de sua alma. Pelas horas de desespero. Pelo controle para manter a moral de todos. Pela compreensão de que às vezes um trabalho de uma vida pode ruir em horas. Pensava que uma tragédia talvez fosse menos dolorida se fosse rápida e não a conta-gotas como tinha acontecido com eles.
Deixara sua casa para trás. A porta aberta na ânsia de salvar um pouco dos amigos que tinham esquecido dos documentos. Tanto se esquece quando a vida está em jogo. Mas com certeza estes dias nunca serão esquecidos. O pior dia de suas vidas.
Respirava fundo, tentava pensar que seria como seu vaso chinês. Flutuaria ereta sobre as imponderabilidades. Sobre eles não tinha controle. Mas se sabia acompanhada daquelas coincidências mais que simples acasos. A linha de energias que a guiava mostrava que iria reconstruir sua esperança e fazer de novo. E de novo, com a tenacidade dos sobreviventes.
Linda simbologia da força dos sentimentos que se movem entre sonhos e realidades, e assim removem o que parece impossível...
ResponderExcluirE tudo real, contado pela pessoa que vivenciou
ExcluirParabéns por retratar com seriedade e doçura esses tempos tão trágicos. Esse texto nos informa, chama a ajudarmos e emana boas energias.
ResponderExcluirSempre vejo situações extremas como lições de vida. A maneira como reagimos faz diferença. Obrigada pelo comentário
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