A criança, a rua e a felicidade

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O menininho em sua bicicleta passa por mim. Atrás seu pai que vai cuidando seus caminhos, sem tolher a sua liberdade de ir e vir. Vai dizendo com voz firme e carinhosa o que fazer, onde passar e como usar as calçadas. Paramos no sinal que está vermelho para nós. A moça na frente, vendo que não vinham carros, apressou o passo e atravessou a rua. Eu não. Me lembrei do menino que estava com o pai. “A tia passou no sinal que não era nosso” diz sua vozinha de criança. O pai explica algo como adultos apressados. “Quando eu for grande vou poder também atravessar no sinal vermelho?” pergunta sua voz ingênua. A sinaleira abre e eu sigo no meu passo apressado de gente grande, sem ouvir a dificil resposta do pai. Penso que estamos a dar exemplos a toda hora, mesmo para quem não conhecemos. Eu também já fui a mulher apressada que aproveitou uma rua deserta para passar, sem nem me dar conta da menina na mão do pai que teve que ser contida para não fazer o mesmo. Também já fui a tia que ensinava a não jogar nada no chão, nos anos 90 e uma menina muito esperta me perguntava: "porque só eu que tenho que procurar uma lata de lixo", apontando para os adultos que deixavam a cidade suja. Quantas vezes somos atropelados por perguntas que não querem se calar, nos questionando sobre hábitos e condutas. Porque fazemos o que fazemos. Quanto de nossos atos são reflexo de nossos discursos. Somos realmente o que dizemos que somos? Nossas máscaras de cordatos não caem se pisam nos nossos calos mais doloridos? Nossa fama de tigres não se transforma em ronronados frente à forças mais poderosas que não ousamos enfrentar? Qual o exemplo que damos a quem nos vê nas ruas. Nosso discurso de solidariedade que bate de frente ao negarmos um pão, uma esmola, uma ajuda? Nossa estampa de independência que se esfarrapa ao negar de nossas necessidades? Muitas coisas penso enquanto caminho pela cidade ensolarada de uma manhã de outubro.

Um homem de camiseta surrada do meu time de futebol fala solitário enquanto vasculha um lixo urbano. Sua voz soa alta dizendo que Cristo vai voltar. Me fixa nos olhos quando passo e grita: "ele já voltou e ninguém se deu conta. Seu nome era Hitler". Saio com meu passo normal enquanto ele continua seu discurso desvairado. No fundo somos todos um pouco loucos solitários vagando em bandos pelas ruas da cidade. Uns aparentam mais serenidade. Outros, desgarrados da sorte, gritam seus anseios quase sem medo porque nada mais lhes resta.

Penso que viver nem sempre é fácil. Talvez como a moleira sábia de um filme que vi ontem, não seja necessário lembrar, saber ou pensar sobre tudo. Ser feliz no momento presente é o que conta.


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