Memórias guardadas na nuvem


Imagem gerada no BING Dall-E


Os braços não os sentia como antes. Não que não os soubesse em si, mas pareciam meros apêndices do tempo em reclamavam de dor quando as mãos dedilhavam céleres o teclado. Hoje teclado não mais existe porque os comandos são oferecidos pelas Yinuo, as sucessoras das primitivas Alexas. Era uma sensação estranha ter o corpo físico substituído por sistemas binários que guardavam nas nuvens sua memória, seus feitos, suas narrativas e sagas. Não sabia se era exatamente assim que funcionava já que nunca se interessou por tecnologia digital. Bastava que funcionasse e estava bem. Já nem podia afirmar que tudo o que saia de sua boca era realmente fato acontecido, ou versões geradas por ela mesma, ou por algum sobrinho ou amigo que recordava em sua cabeça e acrescentava ao programa básico. E nem importava porque seus parentes mais próximos também já eram hologramas de um passado que já tinha se ido. Ficaram pendurados em gavetas, à disposição de algum curioso ou historiador que quisesse pesquisar a vida de pessoas comuns. Era hábito agora em que todos já nasciam influenciadores. Perdera a graça. O sentido. A razão.

Lembrava de um tempo em que havia momentos de céu azul. Não muitos, é verdade. Mas também não sabia se essa recordação era dela, ou de sua mãe ou avó. A cada pane no sistema, os dados guardados se misturavam. Sutilmente, é verdade. Um bug ou erro proposital, ninguém sabia. Um dia, um observador notou que um notório admirador de um grande político do passado, passou a soltar frases de apoio ao adversário, assim do nada. Foi pesquisar e notou uma série de incongruências pequenas nas falas dos indeletáveis (ou zumbis virtuais como alguns os chamavam na intimidade). Pouca coisa, resolveram deixar na conta dos erros mínimos aceitáveis. E uma nova cláusula entrou no contrato gigantesco que ninguém lia mesmo.

A motivação era fugir da morte. Ou melhor, do esquecimento. Morrer era o mesmo que ser cancelado. E para quem dispunha de alguma reserva financeira, este era um destino inconcebível. Entrou ela mesma no sistema, se definiu por questionários e memórias que ia narrando. À essas foram acrescentadas pesquisas nos reservatórios oferecidos pela teia virtual. Pronto. Lá estava sua versão em um meta verso idealmente criado como os antigos parques disneilandicos onde as pessoas mais jovens costumavam passar férias. Lembrava quando fora pela primeira vez a um. Era uma jovem de uns 15 anos e era seu primeiro voo solo. Embora parecesse estranho porque também lembrava de outro primeiro voo solo bem mais jovem, para a casa dos avós. E pensando bem, porque iria a estes parques que nunca lhe atrairam? Não era o feitio dela. Seriam memórias espúrias? E faria alguma diferença? Não seria até mais charmoso e combinaria com aquele visual loiro que tinha escolhido para ser lembrada. Loira? Só tinha sido loira ao nascer. E nunca tinha usado essas roupas que estavam em seu avatar. Quem teria definido essa sua nova versão que nada tinha a ver com a sua verdadeira?

Nem era hora de filosofar porque o jovem curioso que a visitava na sua casa das nuvens queria saber detalhes de como tinha vivido, o que pensava da vida, e porque tinha escolhido ser lembrada assim. E não assado. Ainda não tinha esquecido aqueles ditados e maneirismos de sua avó. Ou seria bisavó? Ou outras tantas antes dela que tinham vivido e tinham virado pó. Ou cinzas. E lembrança na mente de quem as amara.

A vida talvez seja assim, um repositório de versões, nem todas reais, mas mesmo assim ainda verídicas. Urgia aproveitar seu momento de vida breve para reviver.

Reviver. Reinventar. Ressurgir. Antes que uma mão apressada apertasse o botão de até mais um pouco...

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