me reconstruo eternamente, andarilha pela vida que sou

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Enquanto caminho pelas ruas desertas do meu bairro, lembro que é domingo de Páscoa. Meu dia começou cedo, antes das seis. Gosto de acordar quase de madrugada, e nesta época de outono, ainda se pode ver o sol nascendo devagar no meio dos prédios. O céu mistura tons de azul escuro e um alaranjado bonito que depois vai esmaecendo. Hoje até levantei mais tarde porque tenho um certo medo de sair quando não há ninguém. Ou pouca gente. Algum caminhante apressado, muitos que dormem nos chãos, nessa terra tão sem oportunidades para tantos.

Depois do café, da pedalada matinal na bicicleta parada de casa, das postagens nas redes, nos cuidados com a mãe, nesse desvio de função que assumimos quando nossos pais envelhecem, saio.

Há poucos barulhos na rua. Diferente dos dias de semana, os domingos são ainda silenciosos nas manhãs preguiçosas. Moro perto de um parque famoso na cidade. Caminhantes como eu, corredores como nunca serei, briqueiros e gente montando as barracas onde vendem de tudo: de roupas usadas à artesanato. Procuro o que fazia objetos com rolhas de vinho para lhe oferecer as dezenas que juntei desde a pandemia. Nunca mais voltou ao parque.

O atendente da loja de plantas me dá um bom dia animado e lembra a caminhante solitária que é Páscoa. Dia de comunhão, de redescobrir e renascer. Sempre revigorar em nós os caminhos da união e afetos trocados. Mesmo que seja com desconhecidos que passam trabalhando ou apenas caminhando num domingo qualquer.

Nunca levo celulares, nem chaves. Saio como Caetano, sem lenços nem documentos, num sol de ainda abril. No meio das árvores vejo a lua. Bela, redonda e safada, se rindo de estar aproveitando a luz do sol. Gravo a imagem na minha mente. Gravo outras imagens da luz no meio do parque, os recantos, os cachorreiros de sempre. O senhor de chapéu e passo mais tropego que passa me dando bom dia. O local, já limpo, na frente da estátua onde o João de Barro montou casa no peito, e onde ontem havia um despacho colorido. Nunca vejo despachos no parque. Devia ser um pedido especial.

Um cão parado, majestoso, olha algo que não percebo. Uma família toma café no bar. Na mesa ao lado, um casal idoso olha um celular e ri com ternura enquanto suas cabeças se aproximam revelando um afeto há muito construído.

Apresso o passo. Cruzo as ruas sem movimento e subo a lomba para a minha casa. Escrevi mil crônicas na minha cabeça. Fiz roteiros de vídeos onde falo coisas que nunca falarei de verdade porque vídeos ainda não me agradam. É Páscoa. O coelhinho, que sou eu, não deixou ovinhos porque não sou chocolatra. A gata mia. Minha mãe dorme. Escuto o podcast de uma amiga que mora nos estates falando sobre a realidade americana. Lembro de meus avós, imigrantes. Lembro de meu pai que começou a vida varrendo o chão do banco onde fez carreira e que nos permitiu ter estudo, casa, roupa lavada e tudo o mais que nos deu segurança. Lembro os anos que passei até aqui. Com certeza mais do que os que me esperam adiante.

Sorrio para a paisagem da janela. De certa forma estou feliz. De certa forma renasço todos os dias. E me reconstruo eternamente. Com ternura e com resiliência.

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