Falta de sintonia

 



Aprendi a ver e fazer várias coisas ao mesmo tempo. Equilibrista da minha atenção como se o foco pudesse ser medido em balança. Ouço you tube relevante enquanto penso e escrevo. Nestes nossos tempos elétricos onde vivemos fazendo tudo ao mesmo tempo no mesmo lugar é um mantra corrente que devemos ser sempre maravilhosos. Ou espetaculosos. Ou chorosos. Ou seja lá o que nos garanta atenção em formas de curtidas momentâneas. Todos queremos nossos 15 minutos de atenção. Não sempre foi assim? Acho que sim. Desde que nascemos nossa luta por amor e reconhecimento ganha contornos de glória e desgraças, seja lá o que fizermos para tanto. As maestrias se perdem nas personas que criamos. Tudo bem, a vida é feita de aparências e aprendemos desde que adolescemos que nada nos é dado de graça neste mundo onde cavamos a sobrevivência com o suor de nossos corpos e rostos. Alguns literalmente, outros só nas academias, onde a juventude e a saúde é buscada como meta de brilho social.

Ouço Mozart no piano. Dame Mitsuko Ushida. Gosto de piano. E gosto especialmente de Mozart. E sempre o vejo com a risada de Tom Hulce em Amadeus. Gosto daquele Mozart irreverente.

Ando em total falta de sintonia com a escrita. É como se vivenciasse o mundo sem gritos, sem angústias mas também sem paixões. Vivo. Ou sobrevivo. E não sinto aquele frenesi de extravasar algo que nem eu sabia o que era e jorrava de meus dedos como se fosse psicografado. Hoje não. As palavras deixaram de me habitar. Me falta o sentido do dizer.

Talvez haja momentos em que apenas necessitamos levitar. Não pensar demais. Absorver o inevitável, mesmo que ele nos apavore. Mesmo que nos sintamos como que vivendo em um universo paralelo onde os sentidos ficaram trancados em outro tempo, outro lugar. Outro mundo. Onde as conexões possíveis parecem embotadas. Não é uma saída o ritmo frenético do filme ganhador do Oscar 2023. Não me basta fazer algo bizarro para mudar de mundo. O surreal parece tão afeito ao cotidiano que nem saberia dizer se ainda há algo que surpreenda de verdade. Mas ainda me reconheço nos que vivem nas sombras, aqueles que são coadjuvantes, que não precisam de luzes ou holofotes. E que usam do afeto e cuidados diários como fontes de vida e conciliação. E talvez o amor seja realmente a única ponte entre mundos e pessoas, por mais piegas que isso possa soar.

Ouço Mozart e olho o mundo através da janela. As máscaras já viraram quase item de armário. O mundo parece quase normal como era na era pré pandemia. Era?

Ainda luto com as sequelas psicológicas de um vírus que não me matou fisicamente, mas me trouxe de volta inconsistências e traumas que havia trabalhado, naquela administração da maturidade que varre algumas poeiras para baixo da cama. Até o dia que elas voltam. E sempre voltam.

A saída, além do afeto? Maestria. Aprender e aprender. Saber além do mínimo. Compreender as entrelinhas. E me saber cada vez mais eu comigo. E um dia, talvez, as palavras voltem a me acarinhar.


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