Sou do tempo da internet de escada

 

elenara elegante

Internet de escada era um meme que corria no twitter quando os jovens descobriram que a internet dos velhinhos como eu era discada. Não sei o quanto tem de piada ou se realmente era real. Não duvido porque tantas vezes ouvimos algo de passagem e assimilamos como sendo a versão mais verdadeira. A gente canta música com letra errada e jura que é a certa. Acha que é mal passado quando na verdade é amar o passado. Fala ditados sem entender a coerência até entender que cuspido e escarrado era esculpido em Carrara. A gente olha a juventude que erra uma coisa básica que vivemos e acha que é pura falta de informação esquecendo que o tempo sempre traz mudanças e que as versões estão aí mesmo para comprovar que tem até os que acreditam em Terra plana quando a gente achava esquisitice os que juravam que não houve pouso humano na Lua.


Sou do tempo em que o máximo era mulher não ter peito e jogar fora o sutiã, que ainda um tempo atrás era chamado de corpinho e tinha bicos absurdos apontando para frente. Talvez os absurdos levem aos contrapontos. Uma geração muito conservadora gera filhos rebeldes. Uma geração que aposta em flores contra guerras pode gerar filhos que corram para acumular o que os pais não quiseram. Gosto dessa observação da história se desenvolvendo. Lembro de uma sobrinha, vendo um filme sobre a época de minha adolescência em plena ditadura, me dizer: como vocês eram pouco sorridentes. Mas como sorrir em tempos de censura e torturas? Os dias passam e com eles a memória coletiva. De muitos. Alguns lembram. Ainda bem

Sou do tempo em que começaram a ensinar uma precursora da gameficação no ensino. Onde antes eram turmas que se acompanhavam desde o início do curso, fazendo camaradagens, agora eram concorrentes a vagas que iam se estreitando. Nunca curti concorrência. Não acho muito lógico ter que correr para ganhar se a gente pode colaborar. Visão de mundo bem ultrapassada essa minha onde qualquer coisa hoje nos obriga a fazer coisas para ganhar outras. Nada contra o trabalho, mas tudo contra um sistema que te molda a postar algo assim ou assado para ganhar curtidas. Ou a fazer joguinhos bobos para marcar pontos em sites que vão te premiar como a gente faz com bichinhos amestrados. Qual é o preço que cada um de nós paga para ter sucesso? O que é ter sucesso? 

Sou do tempo em que a mulher poderia ser deserdada pelos pais caso se comprovasse que não era mais virgem. E do tempo em que defesa da honra era argumento para que feminicidas fossem inocentados em tribunais, onde eram julgados por outros homens. O que só comprova que só glorificar tempos passados é tão burro quanto só glorificar tempos presentes.

Sou daquele tempo em que se brincava na rua, sem grades nas casas. Mas também sou do tempo em que via muita TV porque era perigoso brincar na praça. Sou do tempo das transições e mudanças. E sou de ontem e de agora. 

Meus olhos viram países morrerem e novos serem criados. Meus ouvidos ouviram músicas de protesto e de alienação. Meus dedos tocaram texturas novas e dedilharam em máquinas e computadores. Sou do tempo da internet "de escada" e do 5G. Nasci com a era espacial e vi definhar. E de novo renascer quando se espera sobreviver como espécie saindo da Terra mãe. Vi revoluções e contra revoluções. Vi conquistas sociais e desmonte das mesmas. Vi gente com olhar altivo e bolso vazio. Vi gente hipócrita e de joelhos dobrados. Vi gente que cresceu e gente que só sobreviveu. 

Sou do tempo de sempre. 

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