A finitude e a paixão


Elenara elegante


... E o Senhor acrescentou: “Tenho visto como este povo é rebelde e obstinado. Portanto, agora vai-te, porque a minha ira se acenderá contra eles e destruí-los-ei. E de ti, Moisés, farei uma grande nação....

Destruí-los-ei. Que ira desse Deus que ainda assim falava em um português tão correto, devia ser um Ser muito porreta que levantava sua mão e raios de morte jorravam sobre aqueles que o desobedeciam, ou apenas não o amavam como ele imaginava que devia ser amado. Se encolhia nas aulas de catecismo do rígido colégio religioso onde escolhera estudar. As irmãs de caridade pareciam abutres em longas vestes pretas que as faziam mais deslizar que andar pelos longos corredores. Mas não. Eram mulheres normais. Ou quase. Nos dias que subia à clausura para ajudar na feitura das hóstias, sempre dava uma espiadela nos quartos. Uma vez que outra, flagrava uma delas trocando de roupas. Não fossem pelos cabelos curtos, seriam iguais às mães e tias. A mãe não, que essa vivia fazendo piadas e tinha um olhar sapeca pela vida. Talvez por ter casado com meu pai e não com Cristo.  Afastou de si esses pensamentos hereges que poderiam leva-la ao fogo dos infernos. Ou na pior das hipóteses, afasta-la-ia das delícias do paraíso, que não sabia direito quais eram, mas deviam ser fantásticas porque muitos deixavam de gozar as terrenas em troca das eternas. Alguma parte dela não podia deixar de imaginar aquelas mulheres largando as roupas pretas por outras coloridas e entoando músicas alegres, dançando com frenesi e comendo muito porque jardim do éden que se preze, não podia só ter maçãs...

Cresceu e rapidamente se encantou com a figura do barbudo de Nazaré que ofertava a outra face ao invés de soltar pragas, pedir sacrifício de filhos ou querer matar cidades inteiras como aquelas que a coitada da mulher do Lot ousou olhar e virou estátua de sal, logo se desfazendo ao vento. O tal de Jesus, não. A bem da verdade ele expulsou os comerciantes do templo, mas também paciência tem limite. E perdão. Mas no frigir dos ovos, por mais clichê que isso pareça, ele era um cara legal, que falava de união e foi torturado e assassinado por aqueles que esperavam que viesse com falas de ódio e armas na mão. O que pensaria dos que tanto mataram em seu nome? Acho que se levantaria como aquela vez do templo...

Nas sextas feiras da paixão sempre ficava reflexiva. Primeiro chamar de Paixão uma lembrança de atos tão tenebrosos. Açoites, sarcasmos, flecha cravada no peito, aquele castigo cruel dos romanos de pregar gente viva nas cruzes e deixar a turba admirando a agonia dos coitados. Nem um copo d'água davam por compaixão. COM PAIXÃO. Outra palavra esquisita. Vem do latim compassio que significa entender o sofrimento do outro. A paixão também  tem como origem o ato de aguentar, tanto coisas boas como ruins. Foi só com o tempo que passou a significar grande emoção e ganhou a conotação de coisa boa. Ganhou? Pensando bem, a paixão ainda significa sofrimento para muitos. Explica-se porque a sexta é de paixão. E de pensar sobre a finitude. Um dia partiremos. Todos.

Lembra ainda quando começou a elaborar a ideia do nunca mais. Foi bem antes de saber do Deus vingativo e do Filho bom. Ouviu alguém falar sobre a morte do vizinho. Avô do melhor amiguinho. Saiu para tomar uma injeção e voltou morto. Não voltou. Não mais. Nunca mais. Como assim? Nunca mais Papai e Mamãe? Não, esse iam viver para sempre. Como seria viver para sempre? Naquele tempo parecia uma boa ideia. 

Quando o tempo passou e muitas mortes se sucederam, inclusive de muitos sonhos, que começou a pensar que viver para sempre era uma ideia inocente de um tempo em que a felicidade era constante. Seus pais, órfãos muito crianças, talvez quisessem poupar seus filhos da dor atroz de crescer sem a segurança do amor de um pai, uma mãe, dos dois. Nem Deuses eram vingativos nem a vida seria de todo ruim. Incutiram neles uma chama de vida que ia além. Eram livros, eram músicas, eram risos, eram lembranças. Avós há muito mortos, viviam nas casas como seres próximos, nas histórias que os pais contavam sobre eles. Não eram retratos sisudos nas paredes. Eram seres de carne e sonhos, com exemplos diários de como a vida pode ser interessante, mesmo que partamos cedo. 

Ao envelhecer compreendeu que cabe a cada um a sua escolha. A vida se faz de presença e troca. Um dia, nossa chama incendiará nosso corpo físico e diremos adeus. Nossas partes se diluirão na sabedoria do Cosmos, encontrarão outras partes que fazem a travessia e continuam a viagem.  Há momentos em que a alma é tão grande que não cabe mais nos corpos exauridos. É hora de voar para o que não sabemos, talvez a morada eterna, talvez nos unirmos aos átomos e energias primordiais. Deixamos aqui o que fizemos, o que somos, o que trocamos. Nossa paixão e finitude. Nosso recomeço.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

amantes eternos (divagações com a IA)

Dos meus pertences

Das podas necessárias