Acaso sou mais ou menos confiável que minha avó?

 

Wislawa Szymborska

 Já não se pode confiar nas pessoas, hoje, como se confiava antes.

Seus grandes olhos negros se fixaram na frase que estampava a manchete de uma revista semanal. Não se aprofundou na reportagem, era algo sobre as mudanças de gerações, um tal de fio de bigode que não carecia de documentos para fixar um compromisso. Não se importava com isso. O mundo era o que era e devia ser vivido com sofreguidão, misto de desespero e sobrevivência. Por desespero leia-se o tentar ser um pouco feliz no rodopio de cada dia. A sobrevivência é auto explicativa.

Correu para pegar o carro do aplicativo, enquanto seus saltos faziam um barulho irritante nos paralelepípedos do centro histórico da capital. Alguém não devia gostar de saltos finos em tempos passados. Talvez nem existissem. Talvez mulheres não corressem como agora, naqueles tempos em que as pessoas eram mais confiáveis.

Seriam?

Não pode deixar de pensar que pessoas são humanas, portanto cheias de significâncias. E insignificâncias. Seriam mais confiáveis por nasceram outrora? Duvidava muito.

A palavra confiança é substantivo do verbo confiar. Sua origem é do latim confidere, que significa “acreditar plenamente, com firmeza”. O sufixo “fideresignifica fé, por isso a palavra confiar é muito usada como sinônimo de fé.

Uma rápida pesquisa no Google lhe trouxe a definição. Ter fé. Isso sim fazia sentido. Pessoas pareciam ter bem menos fé no próximo nos dias de hoje. Talvez até mesmo em si mesmas. Não fosse isso não haveria tanta necessidade de recorrer a coachs e instrutores para mostrar o caminho do empoderamento.

Empoderamento. Palavrinha do momento significando que a gente tem que matar no peito, fazer de conta que confia cegamente no seu taco, seguir em frente mesmo quando tudo diz para sentar no chão e chorar copiosamente. Talvez no tempo em que se podia sentir tristeza como algo normal da vida, as pessoas parecessem mais normais. Agora tem pílula e receita para tudo. Até tempo certo para sentir o luto.

O luto. Levou um choque quando um cliente lhe disse que tinha que adiar uma reunião em duas horas porque a avó tinha deletado. Custou a entender o sentido. Deletou, o moço insistiu. Ainda não tinha se acostumado com esses termos guindados à vida da gente. Foi quando perdeu seu pai que alguém lhe deu um toque que ela estava por demais chorosa. Olha, aqui tem o endereço de um terapeuta quântico que vai lhe explicar que as pessoas desvanecem um uma ilusão cósmica. Outro lhe passou o telefone da mulher, profissional famosa que acreditava na máxima moderna que o correto era sentir a dor por algum tempo determinado. Após era patológico.

Lembrou de sua avó quando ficou viúva. Seus olhos brilhantes se toldavam em lágrimas mesmo após anos da morte de seu marido. Suas roupas pretas, tão elegantes, pareciam-lhe tão belas. A morte era solene. O falecido era lembrado em fotos, em falas, em memórias que teimavam em lhe dar um lugar entre os vivos.

Hoje não. Os mortos são deletados. Uma que outra postagem após um comunicado solene. Logo os parentes estão festejando. Partem em festas. Colocam outros ou outras nas suas vidas. E a fila anda. Rápido.

Significa que sejam menos confiáveis que os outros? Há menos densidade na vida que se pinta de cores, que se transveste de novos amores, que usa rimas e clichês vagabundos para domar a saudade?

Também não acreditava nisso. Cada época com seus medos e suas coragens. Cada ser com suas verdades e consistências. Cada vida com suas chaves.

Malditos saltos finos. Maldito trânsito que não anda quando se tem pressa. Maldita vida que se equilibra entre desesperos e sobrevivências. Maldita falta de confiança na esperança de tudo se resolver.

Bendita hora de reflexão. Bendita luta diária que não deixava que pensasse muito. Bendito pássaro colorido que irrompe o cinza da tarde e canta um trinado lindo que lhe lembra a infância. Por momentos ela se torna a avó. Tem a mesma idade da mulher de preto. Ela colorida. Tão confiável como aquela. Ambas paridas na necessidade de seguir em frente, não importa como.

Chegou e subiu. A reunião ia começar. Abriu a pasta, olhou em volta com seus grandes olhos negros. E continuou.

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