A barbárie que nos rodeia

elenara elegante

"Essa canalha rebaixa a ética e a estética" Reinaldo Azevedo

Citar o Tio Rei já mostra o tamanho do abismo a que cheguei em termos referenciais. Ele se referia ao filme "Não olhe para cima", uma sátira trágica e nada sutil ao negacionismo e incompetência reinantes no planeta. Em outros tempos, segundo ele, detestaria o filme. Hoje o considera necessário.

Talvez repensar o que tantas pessoas, das mais diversas ideologias, que se matariam em debates algum tempo atrás, se unem hoje em clamor contra a barbárie que nos rondeia, nos faça acordar da letargia.

Ter que debater eficácia de ciência, a necessidade de um estado laico e a completa desumanidade de práticas abjetas como tortura e exclusão social, só nos mostra que o abismo é profundo.

Os sinais já vinham se revelando quando percebi que ironias precisavam ser assinaladas como tal. Não perceber ironias é um sintoma muito preocupante de falta de inteligência básica de civilidade. No meu entendimento.

Não ter uma mínima noção de metodologia científica que distingue achismos de tentativas sérias de respostas aos problemas gerais já demonstra que a educação, pelo menos a superior, encontra sérias lacunas.

O fato da informação, qualquer uma, se encontrar ao nosso alcance como uma dedada no google, não transforma inverdades ou mentiras deslavadas em algo sério. Saber encontrar fontes confiáveis é um dos mais prementes requisitos para discernir a realidade da matrix dos mundos alternativos que alguns adoram alardear ter descoberto como grande revelação.

Vivemos em guerra de poder. O século passado foi um tempo dominado pelas disputas. Abertas ou veladas. Continuamos na guerra pelo poder. Saber a quem interessa o que, é fundamental para que possamos nos posicionar com clareza nesses embates, cada vez mais acirrados.

Nunca os lados estiveram tão claros. Tão crus. Tão pouco éticos. Incrivelmente pouco estéticos. Além de qualquer outro defeito, a barbárie é cafona, é aviltantemente contrária à beleza sublime da poesia que nasce da alma e não das autorizações arbitrárias de alguns.

Olho na janela. É dia na minha cidade. Alguns podem achar que o dia é bonito com nuvens que trazem chuvas e ventos mais frescos. Outros podem dizer de boca cheia, que chuva em um domingo é coisa do diabo que não gosta do dia santo. Outros ainda podem achar que nem tanto aqui, nem tanto acolá. Mas ninguém pode dizer que o dia é noite. Embora nos dias atuais, alguns se recusem a olhar para cima e digam que a luminosidade é efeito de alguma conspiração de A ou B, e que não é absolutamente dia porque o site xyz assim o disse.

Marchamos céleres para uma dizimação da espécie? Há quem diga que sim, se alternativas não forem tomadas. Outros juram que não, que sempre foi assim, que somos uma espécie inteligente, escolhida ou qualquer outra alternativa que nos afaste da responsabilidade de debate construtivo e eficiente dos rumos a tomar.

Talvez as bolhas de opinião estejam se acirrando e nos afastando, como estrelas vagantes, em universos paralelos e cada vez mais distantes. O único problema é que habitamos um único planeta, com recursos cada vez mais esgotados e com riquezas cada vez mais concentradas. Enquanto alguns planejem escapes em naves para outros édens, nós, os reles mortais, com zeros do lado errado nas contas bancárias, brigamos por migalhas e morremos por vírus cada vez mais ferozes.

"E o que significa a palavra qualidade? Para mim significa textura. Este livro tem poros. Tem feições. Este livro poderia passar pelo microscópio. Você encontraria vida sob a lâmina, emanando em profusão infinita. Quanto mais poros, quanto mais detalhes de vida fielmente gravados por centímetro quadrado você conseguir captar numa folha de papel, mais "literário" você será. Pelo menos essa é minha definição. Detalhes reveladores. Detalhes frescos. Os bons escritores quase sempre tocam a vida. Os medíocres apenas passam rapidamente a mão sobre ela. Os ruins a estupram e a deixam para as moscas. Entende agora por que os livros são odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida. Os que vivem no conforto querem apenas rostos com cara de lua de cera, sem poros nem pelos, inexpressivos.“ —
Ray Bradbury - Fahrenheit 451

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