O vinho e o nada

Elenara Elegante

O vinho girava lentamente na taça deixando lágrimas que se pareciam as que ela mesma vertia. Já tinha cheirado e não sentia aromas de café ou frutas vermelhas. Nem mesmo amadeirados. Mas o gosto da bochechada ia e vinha como marés de lua cheia. Enchia sua boca de gostos, pareciam todas as misturas de bebidas boas que já tomara na vida. 

Mentira.

Parecia mesmo com aquele gosto de primeiro beijo daquele namorado que nem lembra direito o rosto porque efêmero. Mas que beijava divinamente. Enchia sua boca com línguas e emoções desconhecidas. Embora já adivinhadas.

Vivia tempos esquisitos. Lá fora os sons quase normais de uma vida que se descobria em tudo diferente. Cá dentro um aperto novo e tão conhecido. Vivia, se rasgava e se redescobria.

Já esquecera de contar o quanto tentara escrever. Sentava e nada. Sentia uma inspiração, fazia um início de texto. Sentava e nada. 

O nada era um sentimento desconhecido. O escrever sempre fora a sua fuga, seu destino, sua lata de lixo e baú de descobertas. Sua amiga e cúmplice. Mesmo que ninguém mais gostasse, era onde se encontrava. Agora sentava e nada. 

Estava abandonada.

Ela e o vinho.

A vida corria. Ela olhava. Pensava. Analisava. Fazia textões virtuais e nada de virar textos reais. Quando sentava, o nada fazia sentido. Nada para dizer. Nada que valesse a pena. Nada.

O mundo corria feito turbilhão. Ela calma como olho de furacão. Sentia que a correnteza corria. Ela morria junto. O vinho escorria em lágrimas. Ela sorria. Para toda vida há que se ter uma morte. Todo parto requer um abandono. Toda noite precede um dia.

O vinho descia em goles. Ela pairava em doses. Era nada e já pressentia o tudo.

Aos poucos as palavras saiam. Tímidas. Trôpegas. Um pouco non sense. Aos poucos renascia. 

Ainda faltava muito para o nada explodir em um novo big bang. O tempo certo paria. Ela se faria. 

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