A boneca que veio do céu

 
Meados de 1963. Morávamos no interior do Rio Grande do Sul, bem pertinho da capital, Porto Alegre. Meus pais eram jovens e dinâmicos. Nossa casa era linda, no alto de um morro, com um grande jardim e janelas altas como que para que ninguém olhasse para dentro dela. Só tinha um problema: não era nossa. 

A vida da minha família, embora muito feliz, não era vivida sem economias. Meus pais eram órfãos quando se conheceram. Costumavam brincar que tinham juntado suas pobrezas em uma grande miséria. Brincadeira, é claro. Meu pai tinha um bom emprego. Mas também muitas pessoas para ajudar. A mãe viúva, sempre tinha um sobrinho ou mais morando conosco, colégios pagos e a sua velha convicção de que pagar aluguel era jogar dinheiro fora. Solução: construir uma casa sua.

Solução que demandava esforço. Teve um período em que todas as despesas se juntaram, parecia não haver muita saída. Hora de decisões loucas, tipo: pior que está não vai ficar. Lá se foram os dois passar o aniversário de casamento no Rio de Janeiro. Estadia não era o problema já que a irmã de minha mãe morava por lá. Sua pequena casa na Tijuca parecia mágica, sempre havia espaço para algum parente gaúcho que lá aparecesse.

Entre comemorações e passeios, um tempo para mais uma loucura. Saudades da filhota pequena, que ficara aos cuidados da avó e que escrevia cartas ditadas cheias de saudades, fez com que meus pais arriscassem mais uma despesa: uma boneca linda, parecida com a filha, ia acompanha-los na viagem de volta.

O avião da Varig já tinha levantado voo, não sem rezas costumeiras, pela proximidade do mar no aeroporto Santos Dumont. Enquanto olhava a paisagem, com a boneca no colo, minha mãe sentiu um cheiro estranho. Virginiana atenta falou para meu pai. Ele, muito pisciano, achou que não era nada, já pensando em como ia pedir mais um empréstimo para terminar de saldar as dívidas. Teimosa, minha mãe insistiu. Chamou a aeromoça que, na época, se chamava de comissária de bordo. Muito solícita a moça disse que não se preocupasse, que não era nada, mas que por via das duvidas ia comunicar ao comandante.

Poucos minutos depois o avião fez meia volta. Sobrevoou em círculos o mar, jogando combustível enquanto meus pais olhavam assustados a pista, nessa altura, já repleta de ambulâncias e carros de bombeiros. Minutos que sempre parecem horas no ar, o avião pousa, passageiros descem e são colocados em uma sala especial, sem possibilidade de comunicação. Mesmo por telefone público. 

Nas horas em que passaram ali, sem nenhuma explicação, os companheiros de voo evitavam falar muito no ocorrido, mas minha mãe notava os olhares que lançavam à boneca em seu colo, muitos já imaginando a menina que os esperava em casa.

Não lembro quantas horas disseram ter ficado por lá. Nada lhes foi dito e foram, enfim, colocados em outro voo que veio tranquilo para terras gaúchas.

No aeroporto a menina, que era eu, os esperava, cheia de saudades! Mal podia acreditar quando viu, nos braços de sua mãe, aquela boneca tão linda! Ela que era boneca viva de sua irmã e de sua prima, agora tinha a sua, quase igual à ela, da sua altura! 

Mais ou menos nessa época, a menina sonhou com seu avô, pai de sua mãe, que tinha morrido há muitos anos. Um senhor de cabelos brancos, roupa branca e muito simpático que veio conhecer as filhas da Helena. Ela e sua irmã. Anos mais tarde, quando viu pela primeira vez a foto dele, o reconheceu. Era ele. O homem da foto. Lembra disso até hoje. Como lembra da boneca que veio do céu.
        

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