Reflexões sobre a finitude


Esta vida é uma viagem
pena eu estar
só de passagem.
Paulo Leminski


Não lembro quando tive consciência da morte. Tive o privilégio de só perder pessoas muito próximas quando já estava entrando na adolescência. Meus pais não. Órfãos muito cedo, os dois passaram pelas experiências de privações emocionais e materiais bastante marcantes com muito pouca idade. Aquela idade em que tudo deve parecer magia e encantamento eternos.

Perdi uma gata quando criança. Os bichinhos, dizem, também vem para a nossa vida para nos ensinar lições de transitoriedade. Se vão mais rápido que nós. Lembro do trauma lá em casa com a morte da Bolinha. Morreu em um parto, lembro vagamente de falarem que o veterinário não conseguiu salvar. Todos ficaram tristes. Mas não nos impediu de ter novos gatos e conviver com eles em forma de lúdica entrega amorosa.

Pouco depois, talvez até tenha sido antes, o tempo é uma teia enredada nas memórias do passado, morreu um vizinho. Avô de meu melhor amigo. Nossas casas eram separadas por um muro baixo, cujo portão ficava sempre aberto. Assim como as portas. Era como se fossemos uma só família, as crianças entrando nas casas como se suas fossem. Um dia o avô, que não lembro o nome, teve uma gripe. Imagino que tenha pego seu chapéu - os homens usavam chapéus naquele tempo como hoje os guris usam bonés. Desceu o morro onde morávamos, uma ladeira que só até o centro. Para a farmácia, buscar um remédio para a gripe. O farmacêutico, solícito, lhe ofereceu uma novidade que era tiro e queda! Injeção de penicilina. Foi mesmo. Ele teve um choque e ali ficou. Meu amigo sem avô e eu começando a entrar nos mistérios da vida real.

Lembro de pensar o nunca mais. Nunca mais Papai e Mamãe? Como assim? Isso era inimaginável para minha compreensão de criança. Que droga de mundo mais mal feito se um dia a gente perdia as pessoas que amava. Mais que pensar na minha finitude, meu medo era perder os amores.

Comecei a criar fantasias de um mundo subitamente deserto. Tipo filme de cinema, sabe? Por um motivo ou outro, todos sumiam, ficava eu vagando pelas ruas desertas. Não era de todo ruim. Podia fazer tudo o que quisesse. Entrar nas lojas, vestir roupas sem pagar, comer sem pedir licença. Nunca era noite nos meus devaneios. De vez em quando imaginava que uns e outros iam sobreviver comigo. Os meus. 

Talvez tenha sido a origem da minha crença posterior de poder driblar a morte deles. Mas isso é outra história. Antes disso perdi minha vó.

Ela morreu longe, na sua cidade, para onde voltou quando se descobriu o câncer inoperável. No final meu pai tirou férias e ela se foi na presença e cuidados dos quatros filhos, assim como deveria ser com todo mundo. Pensei comigo que eu também faria isso. Não nessa época, pensei isso muito depois.

Fui crescendo. Aquele meu amigo, o do avô, perdi contato. Um dia soube que tinha sido assassinado. Pensei em ir no enterro. Não tive coragem.

Fui perdendo tios. Era sempre uma evolução considerada natural. Os mais velhos se vão primeiro. Mesmo que esses mais velhos tivessem pouco mais de cinquenta anos na época. Para os meus vinte, eram muito idosos. 

Um dia a roda se inverteu. Uma sobrinha recém nascida se foi. Nem cheguei a conhecer, fui só para o enterro, para abraçar minha cunhada e meu irmão que nessas horas não há palavras para consolar. Perder um filho, um bebê que nem chegou a olhar o mundo. Que coisa mais besta essa tal de vida.

Fui elaborando que devia haver uma razão maior para tudo. Uma energia que fizesse sentido. A vida foi se fazendo, novos nascimentos, novas oportunidades.

Um dia morreu um ex namorado. Depois outro. E depois ainda outro. Cada um trazendo um choque. Por mais que os amores acabem em sua forma explícita, todos os afetos que tivemos repousam em nós como parte de nossa trajetória. Mas já nenhum estava perto de mim e também não participei das despedidas.

Fui sentir mais a finitude se aproximando quando as tias começaram a ir. As despedidas doloridas. O nunca mais se fazendo mais constante. Depois de uma certa idade, a gente se encontra mais em velórios que em casamentos e festas. E fica um misto de familiaridade dolorida nos abraços como se todos dissessem que bom te ver viva, que bom estar vivo!

Um dia chegou a vez do Pai. A gente driblou o que deu. Foram nove anos de lutas renhidas, o último mais sofrido. Foi com lentidão que fui aprendendo que é preciso aceitar a inexorabilidade. O que nasce, cresce, vive, ama, lança sementes e parte. Aceitar que cada um pode se deixar levar na imensa onda de energia que nos criou e vai nos absorver, é uma sabedoria de vida.

Entre a criança perplexa que fui e a mulher que conseguiu se despedir de um pai em coma, sentindo uma luz e energia imensa ao redor, sabendo que aquele corpo já não servia para um espírito tão grande. Eu não estava ao seu lado como me prometi. Talvez um dia me perdoe por isso. Ele se foi e não senti o nunca mais. Ele afinal estava também dentro de mim.

Um dia se foi uma irmã. Amiga/cunhada alguém mais nova que eu, alguém tão melhor que eu. A mesma que abracei quando perdeu seu bebê de dias. Aos poucos deixo de escutar sua voz, aos poucos deixo de conversar com ela como costumava fazer, aos poucos sinto que ela se dissolve em luz, puro amor que sempre foi. Ela também está de alguma forma dentro de mim.

Hoje sobrevivo sabendo que os caminhos da velhice tem um destino traçado. Seguro as mãos mais tropegas de minha mãe e troco de lugar com ela, mais mãe que filha, tentando lhe dar um pouco de afeto para que consiga trilhar sua rota, por quanto tempo, não sei. Mas quem de nós o sabe?       

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