Hoje saí na rua

Hoje saí na rua. 
Deveria ser um ato normal, mas fazem exatos dois meses que não tiro o pé de casa. Só saio para ligar o carro na garagem, tipo dez minutos e volto. De máscara, álcool gel  e me sentindo ameaçada pelo tal vírus.

O medo. Mais que o perigo real, o medo do que possa vir a acontecer abate a moral da tropa. No caso, eu. Moro com minha mãe de 94 anos, cardíaca e totalmente dentro do grupo de risco. Eu também, nos meus jovens 63 anos recém feitos, tenho me sentido uma velha. Velha e descartável.

Nos meus piores pesadelos, me sinto ameaçada por um perigo externo que não sei o que é, não sei quando exatamente vai chegar, mas vai, mas preciso escolher com presteza as minhas prioridades para levar comigo. Não muito diferente de agora.

O bombardeio de informações desencontradas cria uma pane nas minhas pobres sinapses. Aliada ao período de confinamento onde perco a noção do tempo, sinto como se elas fossem bailarinas delicadas de balé quando uma pergunta me é feita, ela percorre em câmera lenta meu cérebro, tipo aqueles filmes de futebol que passavam no cinema (os do grupo de risco lembrarão). Ao bater na resposta escolhida, voltam com o mesmo slow motion e já devem ter passado minutos até que eu reaja, sendo respondendo, seja rindo, seja fazendo algo.

Lógico que para isso tem o agravante de dois meses de noites mal dormidas (ah! eu que não fui mãe, como as entendo agora!), o estresse do inesperado e o medo.

Puta merda! O medo é algo assustador. Nos faz ter reações inexplicadas e paranoicas. Lavar tudo com requintes de TOC, gritar com alguém que entra em casa com sapatos, criticar quem saí ao sol e se reúne com amigos, numa festa como se não houvesse amanhã.

E hoje, a aventura! Sair às ruas. Diga-se de passagem que venho adiando tanto que me perdi nas datas de devolução de uma mercadoria. Minha cara no correio ao dizer para o atendente que o prazo ia até 25 de abril e ele me respondendo sem graça que já estamos em maio, me fez compreender que perdi o mês de abril. Deletei da cabeça.

Me fez também compreender um pouco mais o esquecimento dos mais velhos que ficam em casa sem apelos de afazeres, vendo a vida passar da janela. O sol brilhar lá fora e eu aqui. 

Aos poucos sinto a vida lá fora renascendo para o normal. Um novo ou antigo, ou meio termo normal. O meu será quando eu puder finalmente sair às ruas sem medo.

Quando o mundo fizer novamente sentido de alguma forma. Quando viver muito não seja um castigo. 

Estou vendo uma série antiga chamada The Good Place. Vai ter spoiler, se não quiser saber, pare aqui.Um lugar que parece um paraíso, mas é comandado por um demônio que usa do disfarce de ser um cidadão de bem para torturar as pessoas com seus piores medos e frustrações. Parece uma boa descrição do que estou vivendo aqui e agora. Um game completamente surreal, comandado por um sádico que deve estar se divertindo e resolvendo qual o melhor momento de me deletar. 


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

amantes eternos (divagações com a IA)

Das podas necessárias

Dos meus pertences