Flávia, a batalhadora



Os olhares das pessoas no saguão do hotel se detiveram na jovem que acabara de entrar. Moças desacompanhadas em locais como aquele não eram comuns. No final da década de 30 do século XX Porto Alegre ainda era uma cidade muito provinciana. Passos resolutos, sapatos fazendo barulho no piso recém escovado. O recepcionista notou a apreensão em sua voz ao perguntar pelo hóspede do quarto 415. Sorriu com o canto da boca, imaginando talvez um encontro clandestino.

Uma semana antes, Flávia implorara ao tio, irmão mais velho de sua mãe, que a acompanhasse naquela primeira entrevista de emprego. Se formara professora, a única das irmãs que tivera a oportunidade de ter uma formação acadêmica formal. Para isso morara na casa dos tios professores, Helena e Ignácio. Alemães de origem, eram queridos. A tia bem mais que o tio, é verdade. O som de sua bengala se fazia ouvir nos cômodos da casa e ela estudava ainda mais, imaginando seus sermões. 

Foram anos de saudades da família, mas ela aproveitara com afinco. Perdera o pai uns três anos antes e agora sua mãe, Doralice, se fora também. O que seria dela e pior, o que seriam dos irmãos mais novos? Se sentia na obrigação de ajuda-los, pensou em reunir as irmãs mais velhas para que, juntas continuassem em sua casa, mas não deu. Pegou então o seu diploma e foi à luta.

Percorreu os anúncios de jornais, e achou um que pedia uma professora para os filhos de um fazendeiro. Julgou que poderia ser uma boa oportunidade e marcou a entrevista. No afã de conseguir uma colocação que lhe desse um salário de modos a ajudar a família, nem pensou no risco que isso poderia ser...

Uma jovem de 20 anos entrar em um quarto de hotel por um anuncio de jornal...ao se dar conta, pediu então ao tio que fosse com ela. Ele, taciturno, negara. Ela foi assim mesmo.

Telêmaco Salles Pinto era um fazendeiro da região de Tupanciretã. Casado com D. Ercília, tinha três filhos que necessitavam estudar. Escolas não existiam naquela região erma onde morava. Conversara com sua esposa a respeito e acharam por bem contratar alguém com boa formação em Porto Alegre. Aproveitara que tinha negócios na capital para colocar o anúncio no jornal. 

Já entrevistara algumas candidatas, em geral senhoras viúvas ou solteiras de mais idade, quando viu entrar em seu quarto aquela jovem bonita, com ar meigo porém resoluto. Achou que havia algum engano. Jamais alguma família de bem deixaria uma menina como aquela ir a uma entrevista dessas sozinha. Mesmo que precisasse muito do emprego. Com a argúcia de um homem de negócios, sentiu que a jovem tinha uma personalidade ímpar e mais, tinha um carinho absurdo pela sua família unida à um senso incomum de responsabilidade. Sentiu ali que era a mestra que seus filhos, Glênio, Gládis e Loiva, precisavam. 

Lá se ia a jovem para a fazenda São Domingos que distava 4 léguas da cidade de Tupanciretã. Flávia se sentiu amparada naquela família que a tratou como uma filha. Um ano escolar passou ali e eles permaneceram sempre em seu coração.

Sua mãe antes de morrer já tinha manifestado preocupação em arranjar uma colocação para ela. Naqueles tempos não existiam concursos, as vagas eram conseguidas por indicação. Em carta endereçada a ela, dois meses antes de falecer, Doralice lhe escreveu:

Peço a Deus e S. Theresinha todos os dias para que para que passes nos exames e fiques pronta este ano, enquanto a tua nomeação já falei com o Coronel, com o Dr. Panatieri, com o Sr. Bolívar Cunha (sobrinho do Flores da Cunha), ele disse-me que era conveniente tu te qualificares, ainda que não possas votar, visto o tempo não dar. É para mandares o requerimento e a certidão de nascimento, se ainda tens, a Maria mandou te explicar. Travei conhecimento com o sogro do Dr. Fanor Marsilac e ele prometeu dar-me um cartão de apresentação ao genro, disse-me ele que o Dr. Fanor já tem arrumado nomeação para umas quantas professoras e nós indo a Porto Alegre, lá temos diversas cunhas e boas, tenho a esperança que haveremos de arrumar.

Sua querida mãe não chegou a ver tão ansiada nomeação que só ocorreu mais tarde, por intermédio do Dr Acimar, amigo dos avós. Voltou ao seu querido namorado, Ozy, com quem se casou e viveu ainda muitas outras lutas e conquistas que a sua vocação de ensinar e ajudar lhe apontaram. Nunca deixou de querer reunir sua família e sempre foi mestra exemplar.

Comentários

  1. Deu ótima formação escolar a cada um de nós. Isso nos possibilitou galgar os degraus da vida, com relativa firmeza. Carlos, filho

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    1. E quantos mais ajudou os educando com carinho e maestria! Uma precursora!

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