Evanescer com a vida na vazante


Havia algo estranho nos caminhos que se bifurcam. As palavras, antes tão presentes e sorrateiras, estavam mais distantes. Pareciam aquelas amigas com as quais se perde o contato, vão sumindo, se perdendo na bruma dos tempos. Quando se vê, nosso vocabulário se empobrece e fica restrito aos mesmos e velhos termos.

Prosopopeias e que tais se tornam apenas figuras de linguagem, já quase sem significado. Queria gritar coisas belas, mais que isso, queria vociferar bravamente angústias e vitórias. Que ficassem na intenção. Tudo era tão devagar agora.

Seu tempo era de esperas. Tentava abarcar o mundo com seus inúmeros tentáculos e já não sabia como. Seus braços eram pequenos, já não tinham a força de antigamente.

A mesma casa, a mesma janela, outro sol, mas lembrava tempos de antes. Já vivera esse tempo. A imensa roda da vida girava fazendo de conta que era nova. Mas não era. A menina que chegara naquela cidade, cheia de vontades, ainda morava nela. As mesmas inquietudes. As mesmas e velhas indecisões. Os mesmos medos repetidamente vivenciados como catástrofes e sabotagens.

A mente não. Essa era mais embotada. Ficava horas perdida em busca de palavras que fizessem algum significado nas coisas que queria ainda falar. Faltavam.

Eram manchas de alguma perda. Uma gaveta sináptica que emperrara e permanecia fechada. O conteúdo lá dentro. Intacto. Mas não mais alcançável.  Pelo menos, não sem esforço.

Os velhos caminhos pareciam sem viço. Ler era mais penoso. Deixara de ser aquela viagem onde se mergulha de cabeça, sem vontade de submergir. Escrever era mais delicado. Passava por um crivo que tirava o prazer. As palavras pareciam tão sem sentido, tão banais, tão clichê. Ela mesma era apenas uma velha dedilhando coisas já sabidas para um mundo que se renovava. E que ia permanecer se renovando enquanto ela encolhia. 

Sabia todos os caminhos de auto ajuda. Os segredos de atrair magias. A abertura de almas que faz fluir a imensa energia que circunda o universo. Mas era dentro dela que a vida evanescia. Era a vazante da esperança, era a falta de sentido de ir além.

Talvez tivesse sobrado um pequeno ponto de equilíbrio. Uma ponta de apoio para emergir uma nesga de criatividade. Uma centelha de humor que visse, na desgraça e no vazio, o impulso da guinada.

A luz que reflete na água e deixa manchas de brilhantes. A poeira que era brincadeira na mão da criança que se descobre. A curiosidade que levanta o olhar para novas significâncias.

O novo que sucede ao velho. A porta que teima em abrir, mesmo rangendo. A enchente que inunda a terra, a alma, a vida. A água. O ar. Todos os elementos que exorcizam o ancestral que emudece. 

A voz que clama a música que nos habita. A paixão que teima em não morrer. Se os caminhos se bifurcam e se confundem, a mente teima em achar relações nas formas que enxerga. O devenir. O vir a ser. O continuar.

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