A fêmea que se descobre

Em algum lugar de sua mente e corpo explodiram sensações desconhecidas, mas não totalmente.

Sabia que já eram marcas em sua memória de algum tempo que talvez ela não fosse ela, mas alguma parte de outra mulher, um pedaço de lembrança, uma coisa que marca tanto que nunca mais sai de cada pedacinho do corpo ou da energia da alma.

Como ela, várias outras, passaram por estas terras de Deus, sendo burro de cabresto, sendo alvo de perseguição, sendo glorificada como santa, sendo xingada de puta. Vários rótulos, nunca ela mesma. Ela e elas que se sabiam apenas humanas. Falhas e cheias de vontades.

Vontades sufocadas. 

Vontades arejadas de tempos em tempos.

Vontades escondidas.

Vontades tão claras e tão intensas que assustavam aos que, em redor, as temiam como coisa do Diabo.

No tempo das Deusas devia ter sido diferente. Havia de ter sido diferente. Queria muito que tivesse sido diferente. 

Um tempo em que não precisasse provar nada. Nada sufocar. Nada fazer que não fosse de seu desejo.

Onde abrir as pernas fosse coisa natural quando se queria. E fechar também se assim fosse vontade.

Onde seu corpo não fosse depositório de poder do macho vencedor de qualquer coisa. Ou do eterno perdedor também.

Um tempo em que seu saber não tivesse sido queimado em fogueiras. Onde o fogo não tivesse sido usado para limpar da face desta terra de Deuses a ousadia de querer aprender e saber. 

Fogueiras mais refinadas hoje em dia. Não mais o fogo lambendo a pele, a dor, a dor, a dor queimando e torrando.

Hoje não. Hoje a refinada tecnologia faz de todos o que bem quer. Deleta o que não serve. Coloca no ostracismo o discurso contrário. Formata vontades em padrões socialmente aceitáveis.

Promove limpezas morais com cirúrgica certeza. Mas ainda não conseguiram eliminar a dor.

A dor. A dor. A dor.
A dor que consome a alma. A dor que queima feito labareda o sonho desfeito, nunca feito, o nada.
A dor do nada.

A dor do tudo. Da imposição de ser nada menos que perfeita. Não a sua perfeição, seja lá o que isso represente, mas a perfeição de fora. Dos grupos, dos deuses e até de outras mulheres. 

A dor de não poder ser.

Uma Ova!

A voragem que explode não se prende. A fêmea que se descobre ninguém  segura.

A liberdade nasce dentro de nós.  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

amantes eternos (divagações com a IA)

Dos meus pertences

Das podas necessárias