De uma mulher qualquer

Iluminada.

Acordou cheia de luz. Dessa luz que não importa o cinza nublado de fora, ela inunda a alma e se esparrama feito maria mole pela vida. Nem bem sabia o porquê. Nem tinha motivo.

Ela que fora parida por Maria/Joana/Clarice/Rosemari. Gerada em uma noite de lua cheia e ardente em que fora seduzida pelo Mario/Miguel/João/Claudenir que a envolveu em seus braços, arrotando palavras de sedução tão novas e delirantes.

Mentira. Foi uma foda dessas de fim de noite, entre duas pessoas que nem mais se olhavam de tão conhecidas, dessa convivência que vira fardo, vira vida tão normal que cansa. Cansa até os poros. Nem sabe como tiveram energia para que um ovulo se abrisse a um espermatozóde. Deve ter sido descuido. Só pode.

Oito meses depois nasceu aquela guria mirrada. Feinha que dava dó. O Mario/Miguel/João/Claudenir já tinha morrido em um acidente de trabalho. Depois de uma jornada de oito horas, foi fazer bico de segurança. Bala perdida numa briga qualquer de bar. Um número nas estatísticas e uma notinha de blog policial. E fim. De herança deixou uma foto 3x4 e uma certidão de casamento. Com outra que não era a Maria/Joana/Clarice/Rosemari.

Oito meses. Sempre fora apressada. Não esperava as coisas se ajeitarem. Ia em busca delas nem que tivesse que passar por cima dos conselhos da tia. A mãe tinha partido em busca de novos caminhos. (Ela imaginava para amenizar a dor de a ter perdido para uma dessas epidemias de dengue/gripe/sarampo/febre-amarela que grassavam por aí)

Cresceu inquieta. Tinha uma secreta luz, uma quimera escondida que teimava em arder nas horas mais esquisitas. Tentava esconder. Vestia roupas maiores que ela, as que lhe davam de favor. Deixava o cabelo crescer para que tapasse o peito. As vontades. Os desejos.

Os desejos sangravam dentro dela. Ela mesma sangrava.

No começo levou um susto. Brincava ainda de bonecas quando veio aquela coisa gosmenta. Achou que tinha se machucado. A tia explicou que era assim mesmo. Sina de mulher. Vinha todo mês e tinha que deixar as brincadeiras com o Joaquim/Francisco/Antonio/Vicente (na verdade com todos eles). Agora era mais complicado. Ela tinha que pensar no futuro. Era mercadoria valiosa se bem cuidada. (A tia devia estar esclerosada, onde já se viu? Aqueles amassos é que a faziam se sentir querida e amada. Mais que nunca na vida)

Mas tinha uma coisa que não abria mão. Ela escolhia.

Sei lá, já nasceu assim. Esquisita. Cheia de manias.

Ouvia boleros. Lia muito. Gritava de prazer. Criava suas próprias versões para a vida. Por dentro.

Por fora era comum. Até demais. Mais uma dessas Magalis/Anas/Iaras/Lúcias que passam nas ruas, espantadas e sobreviventes de uma linhagem secreta de amazonas que caíram sem nem saber em uma terra de misérias.

Um dia, quem sabe, mistério/êxtase/luz/caminho, lhe resgatariam dela mesma.

Porto Alegre, junho chuvoso de 2017. Brincando de escrever contos como um desafio. E como sempre deixando sair de borbotão, se refinamentos e sem revisões. E morrendo de medo (e vontade) de perguntar a opinião sincera de vocês.

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