Nenhum espelho reflete seu rosto - indicação de livro


Uma leitura inquietante. Não pela escrita que é absolutamente leve e de fácil leitura, mas pelo assunto que mexe com aquele sentimento mais caro à maioria dos seres humanos: confiança. 

A história de Nenhum espelho reflete seu rosto, romance de Rosângela Vieira Rocha, passa em um ambiente muito conhecido de todos nós: as redes sociais e o seu aparente meio de facilitar conhecimentos. A protagonista é uma mulher madura, profissional criativa e realizada. Uma joalheira. Helen conhece um homem interessante em uma rede. Conversam escudados pela cumplicidade de uma tela que traz o desconhecido para dentro de nossas casas e nossa intimidade. E aí começa o drama.

Na verdade, quando começamos a leitura, Helen se encontra já em processo de recuperação do que apenas vislumbramos, mas ainda não sabemos de todo. Sabemos que deixou marcas. Profundas marcas. Aí se deu meu primeiro engate pessoal com a história. Dizem que um livro se faz do que o autor imagina e também do que o leitor capta e transforma. Pois uns dias antes, tinha feito uma reflexão sobre uma bolha e escrito que "não há crescimento sem calma e sem enfrentamento. Saber a hora de deixar a proteção de lado é uma das sabedorias que a Vida nos impõem." Em uma dessas sincronicidades, leio então que
"a casca das feridas ainda não foi de todo formada, é preciso cuidado, delicadeza e um pouco de paciência para que ela perca definitivamente a umidade, a porosidade, e finalmente se torne compacta, uniforme, seca. " 
Aos poucos, como em um processo de cicatrização, vemos a protagonista aceitar o chamado de um médico para que revele um relacionamento que lhe fora tão danoso que ainda a machucava só de lembrar. Ela aceita porque é uma forma de ajudar outra mulher, mais gravemente impactada que ela

Conhecemos então a figura de Ivan. Um homem maduro, que se apresenta de forma virtual, parece ser alguém de credibilidade nessas relações que se formam de teias de conhecidos e que prescindem do contato físico, tão revelador das comunicações não verbais. 

A autora se vale de um recurso interessante para mostrar a história pessoal das lembranças da breve, mas tumultuada relação de Helen com Ivan, ao mesmo tempo que mostra sua firmeza e capacidade criativa ao projetar joias de grande requinte e personalidade. Através do contato de um médico que trata uma outra vítima de Ivan, Helen conta de forma unilateral a sua história. Através de emails, sem contato físico, ela desfia em ordem cronológica todos os detalhes de uma relação tão penosa, que ainda não cicatrizou. 

Percebemos que a sua aparente força em sair sozinha da situação perigosa onde tinha se envolvido, passou também por um sentimento que acomete muitas pessoas: a vergonha de pedir ajuda.
"Não pude pedir ajuda a ninguém, pois pareceu-me humilhante demais contar o que realmente ocorreu, esmiuçar os episódios, expor a minha credulidade, a minha bobagem, a minha inocência, a minha infantilidade. Enfim, reconhecer a extensão da minha vulnerabilidade."    
Vergonha de expor uma face que se sabe quase infantil, imprópria para alguém tão competente em outras áreas. Essa mistura de lados, tão comum em todos nós, é exposta de maneira fluída. Vamos entrando aos poucos na história que poderia ser de uma aventura com um homem sedutor. Afinal, quem nunca? Mas como tantas mulheres se tornam reféns de uma lábia, quando sentem em si sinais de que algo não é exatamente como em um conto de fadas moderno? Onde as redes de proteção não funcionam? Onde os tentáculos de alguém disposto a seduzir por um impulso narcisista podem ser tão poderosos que minem os alertas internos, a capacidade de percepção e levem à caminhos tão inconsequentes?

Aí um dos grandes trunfos do livro, fruto de uma extensa pesquisa da autora sobre o narcisismo, como pessoas com este distúrbio de comportamento podem agir, que tipo de pessoas são alvo e como eles podem se imiscuir em nossas vidas de maneira sorrateira e insidiosa. 

Mais que literatura, o livro traz um alerta. Me fez pensar em como tantas pessoas se tornam reféns de mentes doentes. Não são poucas as histórias que ouço de mulheres vítimas desses golpes, dessa violência social que pode lhes minar a autoconfiança. Às vezes de maneira irreversível. Escapar nem sempre é fácil, afinal atitudes mais enfáticas de mulheres costumam ser taxadas das mais diversas formas pejorativas:
"Não é assim que são chamadas as mulheres que reagem vigorosamente? Histéricas, malucas, doidas de pedra? Não é essa a desculpa utilizada há séculos para nos trancafiar nos hospícios, nos sanatórios, nos conventos, nos mosteiros, nas modernas clínicas de repouso ou dentro de nossas próprias casas?"
Tal qual as gemas preciosas que tanto admiramos depois de lapidadas e transformadas em joias, o processo de descoberta das potencialidades de cada uma de nós, desperta um processo de visão mais criativo sobre nossas realidades. Transformar a rudeza em delicadeza, saber o momento de raspar, o momento de preservar, o momento de transmutar dor em crescimento. Ninguém está impune de cair em armadilhas, até porque a vida nos exige um toque de ousadia para sair da mesmice. Se apaixonar pelo desconhecido é uma das maiores ousadias que o ser humano pode se permitir. Há um limite tênue entre a loucura do se jogar no vazio e a certeza da segurança. Tal qual malabaristas, tecemos fios de experiências e consolidamos vidas de vitórias e arrebatamentos, entremeadas com riscos como os que causam desastres em pedras valiosas mal lapidadas. 

Talvez o conhecimento nos traga mais condições de nos precaver. E também a capacidade de dizer mais nãos e seguir com mais segurança nossos avisos internos. E se, porventura, cairmos, nos dá também mais segurança para levantar outra vez. Como Helen fez.

"Se eu fosse uma joalheira rica, teria muito gosto em presenteá-las com a pulseira mágica. Algum dia, quem sabe? E se acontecer um milagrezinho? E se eu tiver direito a viver uma história da Carochinha e minhas joias fizerem sucesso? É um mistério profundo, o caminho das joias. Ou qualquer caminho, no final das contas."

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