O peso dos olhos que se desviam

  "Vivemos submersos no fundo de um oceano de ar"
Evangelista Torricelli
imagem criada no copiloto iA

“Eu era olhada quando jovem. Hoje, mais velha, sou ignorada. “

Ouço isso e penso: o olhar que se desvia talvez seja mais violento do que o que julga. Porque o julgamento, ao menos, reconhece existência. A indiferença nos torna fantasmas antes da hora.

Estamos em uma roda de conversas sobre o filme norueguês Sex ( da trilogia Sex, Love, Dreams). Pessoas de classe média em uma casa de cultura. Pessoas privilegiadas por terem acesso à cultura em um país onde tantos carecem de comida e abrigo. Duas pessoas tinham morrido de frio porque dormiam na rua em uma semana particularmente fria. Faz frio neste país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. Nem sempre.

No filme Sex um dos personagens narra algo que lhe marcou e lhe fez agir de forma inusitada. Ele fala sobre a maneira como outro personagem tinha interagido com ele, o olhar que o tinha marcado tanto:

“Nunca me senti olhado daquela maneira”

Um olhar que não devora. Olhar que vê.

Em uma sociedade tão estruturada socialmente como aquela, os problemas existenciais são diferentes dos que vivem em locais onde a sobrevivência física fala mais alto. Na frieza nórdica, o drama nasce da falta de sentido, do excesso de estrutura, da rigidez que sufoca a alma. Às vezes esquecemos que o vazio se instala mesmo quando a geladeira está cheia.

Já no filme brasileiro que tinha assistido na véspera, “Mais pesado é o céu”, um dos personagens fala que é sofrido, vivido e sabe que, quando a fome aperta, cada um faz o que é preciso com o que se tem em mãos. É fala pungente e cheia de uma realidade amarga e sem esperança. É a lei da selva.

Na Noruega, tão certinha, o que não dá certo é motivo de questionamentos racionais. No Brasil, e em tantos locais com brutal diferença social, os seres acabam se tornando mais duros, mesmo urrando de dor. Não há tempo para a metafísica quando a barriga grita.

Aí me pergunto: como se vive a velhice em cada canto do mundo?
A velhice na Noruega talvez seja triste em salas limpas demais, com silêncio cirúrgico e visitas agendadas. Aqui, ela é barulhenta. É a filha que grita. O neto que revira os olhos. O médico que nem olha na cara. O atendente que chama de “vó” sem perguntar o nome. É a ausência de rampas, de bancos, de tempo.

E mesmo aqui coexistem Noruegas e Sertões. Há quem possa usufruir de mais segurança. E quem não. E nem vou me deter nas razões estruturais para que isso aconteça. Embora devesse.

Mas velhice em qualquer lugar, e até em qualquer circunstância, é muito de resistência. É ter que provar, todos os dias, que ainda se é alguém. Alguém com nome. Alguém com história. Alguém com vontade de contar o que viu e de ser escutado sem pressa.

As violências talvez se acumulem em camadas. Nem sempre são sempre físicas.
Algumas vêm em forma de piada, de silêncio, de um lugar negado à mesa. Vêm na infantilização disfarçada de carinho. No “deixa que eu falo por ela”. No “isso é coisa da idade”.

Vêm até mesmo nas boas intenções. Porque nem todo cuidado é respeito.

E nessa paisagem desigual, quem envelhece carrega a memória de quando era olhado. Mas agora…Agora precisa lidar com o desvio de olhos. Como se a presença incomodasse. Como se o tempo gasto com ela fosse desperdício. Como se sua existência fosse apenas um eco do que foi.

E o mais doloroso: ainda se está viva. Mas aos poucos, vão apagando a luz.

Comentários

  1. Exatamente!! Mesmo sendo um ser sociável, nós pessoas idosas , não somos mais convidados : nós buscamos ser convidados .. aqueles que tem algum senso de propósito de vida: mas a realidade é assim : Sou invisível!!

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    1. É como se tivéssemos passado do prazo de validade e nos tornassem obsoletos

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