Amor se ama cantando

Era tempo de construção. 
Difícil entender que o parir qualquer coisa demanda tempo. E aquele lento rolar de minutos, horas e dias que antecedem a concretização era algo que a sua alma não entendia. E se entendia, não aceitava.
Mas não havia nem de onde nem por que, tinha que sentar e esperar.
Até lá cantarolava.
A melodia que viesse à cabeça. Às vezes acordava com uma e ela ia e vinha, meio que perene, na sua mente. Só no chuveiro se arriscava a deixar sair algum som. Desafinado. 

Era tempo de construção.
Desses de colocar adubo em cada gesto. Colocar ternura em cada palavra e trazer o olhar mais sincero para expor ao Outro sua delicadeza de alma e sentimentos. 

Em tudo se revelava. E nesse desvelo colocava seu melhor Eu para fora. Sua atenção mais especial, suas qualidades mais bonitas. Era em tudo uma maravilha de pessoa que se deixava descortinar.

E ele também devia fazer o mesmo porque homem mais fantástico nunca tinha conhecido. Adivinhava seus desejos, mesmo os sexuais. Era atencioso nos gestos, nunca o prato sem servir, nunca o vinho por faltar na taça. Nunca o esperar. Nunca o não estar. Tudo era redondo e bem embalado. Ele se vestia de presente. E ela se divertia em se deixar desamarrar em fitas e celofanes.


Amor se ama amando. E o amor cabe se fazer bonito. E a paixão gostosa. O olhar que arrepia. A vontade danada de boa que amolenga, derrete de tanto tesão e se faz entrega.

Ela e Ele eram NÓS. 

Nas risadas. Na cumplicidade. No querer com.

Tudo era construção. E cada pedrinha se encaixava como que por milagre, sem pressa e sem forçar. Mas...

A cada dia que corria ela sentia que faltava fundação. E temia.


Era tempo de consolidação e a música escorria lenta e nostálgica. 

Deixou de cantar os ritmos mais ardentes. Começou a solfejar os lá lá lá, os estribilhos que não pedem atenção. Se deixou levar pelo normal da rotina. Se tornou molenga como elástico que vai e vem, se amoldando aos senões e espinhos que parecem desconcertantes, mas inocentes. Se sofria, se sorria, se morria, nem sentia. Ou fazia de conta que não. 

Escrevia cartas que não mandava. Tomava atitudes que não tinham vazado na realidade. Voava por outros universos onde seus sonhos voltavam a ter miragens e utopias. 

Urgia construir. Gemia vontades. 

Era tempo de estagnação. Foi ficando pequena. Foi ficando sem vontades. Foi se tornando tão aquelas outras de quem ria. Não ela. Não mais ela. Não mais celofanes. Não mais magias. 




Tomava pílulas de felicidade. Tomava drageas para esquecer. Para viver. Para não morrer. Ele cada dia mais outro. Não mais nós. 

Era tempo de distração. Outros olhares, outras vozes. Foi ficando distraída. Deixou de lado pequenas atenções. Cada dia mais carente. Cada dia mais exigente. Cada dia mais distante. As músicas mais bolero. Mais dupla sertaneja. Mais gemidas de separação.

Amor se ama cantando repetia como mantra. Seu quarto cada dia mais bagunçado. Seu coração cada dia mais desocupado. Seus dias mais desolados. 

Era tempo de reconstrução. Se valia botar por terra, puro pó. Se valia reforçar estruturas, reaproveitar. Se valia se amar e se tornar ela mesma toda refulgente. 

Ainda não sabia. Apenas cantarolava. 


   

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

amantes eternos (divagações com a IA)

Das podas necessárias

Escolhas