Rascunho da vida cinzenta

Amanheceu a manhã de um dia qualquer. Um daqueles que escorre devagar e vai se formando na alma da gente como gota que pinga de um remédio. 

Arrastou as cobertas de supetão, mas antes correu os olhos pela tela que lhe mostrava o que tinha acontecido enquanto dormia. Deu um suspiro ao ver as notícias. Melhor ver os gatinhos que eram mais fofos e enterneciam mais que as tragédias e mesmices dos sites de imprensa.

Passou por debaixo do chuveiro sem tempo para aquele banho demorado em que podia meditar. De todos os pecados inconfessados destes tempos de cobranças comportamentais, o banho era o pior. Gastava água sim. Sem remorso. Sem vergonha. Tinha lá os seus pecados. 

Engoliu um café preto misturado com pedaços de pão com manteiga e saiu à rua.



A rua. Cada dia mais assustadora. Tinha vezes em que se imaginava nos tempos em que as pessoas não tinham necessidade de sair dos muros e quando o faziam, eram em comboios intensamente vigiados. Mas não só os perigos de fora a detinham. Os de dentro eram os mais assustadores. 

Por fora era calma e serenidade. Por dentro vulcão e caos. 

Todos deviam ser meio assim nesses tempos loucos em que ninguém se revela mais. Ou seria só ela a sentir de maneira tão completamente diferente que nada mais fazia o menor sentido?   

Bobagem. Parou e respirou mais fundo.

Devia ser o cinza que teimava em não ir embora...Quando o sol aparecia, tudo se tornava mais fácil. Até lá restava aquilo que era cada vez mais difícil de lidar.

Tanto lidou com a morte que a vida perdeu o encanto. Assistir às agonias de tantos, suas decadências e refletir sobre se suas trajetórias tinham valido a pena a faziam perder o gosto mais profundo das frutas e gostosuras. A vida afinal, pensava, não passava de uma sobrevivência em que todos voltaremos ao pós e de nós nada mais restará. Nem a lembrança dos que um dia nos amaram a ponto de se importar conosco.

Um dos primeiros sinais foi uma estranheza com a rotina. Não que ela ficasse ruim. Pelo contrário, ficou mais leve e necessária. As ousadias que faziam o coração bater mais forte foram se perdendo pelo caminho. Encostadas numa cadeira, esquecidas ao pé da mesa. Sumiram.

Depois foi um esquecimento. Começou com as palavras. Elas teimavam em sumir na hora mais necessária. O vocabulário foi minguando, simplificando. Meio que se limitou ao banal.

Depois foram os amigos. Os amores. Até os amantes foram sendo largados como fardo que se despe para facilitar o caminho mais árduo.

O olhar foi ficando mais longe. Parecia a mesma. Só que não. Não mais.

A cada dia cravava a faca mais um pouco. Ninguém notava. 

O sol nascia. Morria. E ela também

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