Malamem



O dia começava ligeiro. Café cheirando gostoso na cozinha, celular uatizapeando a mil. Noite bem dormida. Ufa! Ah quanto tempo isso não acontecia....

Insone de meses, talvez anos. Era nessas horas da madrugada que aquele medo ancestral vinha mais forte a lhe atormentar. O tal do Malamem.

Não o conhecia nem sabia como era. Mas sabia bem do medo que sempre tivera dele. Bastava ouvir o seu nome para seu corpo vibrar, misto de pavor e curiosidade.

Sempre o vira como um cara meio bexiguento, nem alto nem baixo, com cheiro de inverno. Talvez cheiro de vento cortante. E lá vento tem cheiro, menino? Deixa disso, fecha essa janela e vai dormir. Sempre ouvira essa milonga quando pequeno. Nas noites de lua cheia quando abria os vidros e procurava o talzinho. Tinha então aquela coragem que só habita os corações puros. No fundo pura bravata de menino criado para ser macho.

Mas o que! Os anos passaram ligeiros. A vida lhe tomou de assalto. Aos poucos a antiga inocência de olhar o mundo de alma franca foi-se perdendo, foi-se escondendo. Dores. Perdas. Amigos que se revelaram traidores. Ele mesmo que baixou as guardas. Deixou-se levar pelas facilidades de fechar os sentidos.

Fechou os olhos para si mesmo. Mas nunca esqueceu o tal do Malamem. Em alguma esquina da vida devia estar por lá, lhe esperando, de tocaia. 

Dele fugia como o capeta foge da água benta. Do resto até que não. 

Viveu uma vida boa. Fez o que quis. Quase tudo, é verdade. Que só consegue fazer de tudo quem está acima do bem e do mal. Ele ainda não. Ainda seguia regras. Mesmo quando as deixava de lado.

O branco dos cabelos deu-lhe um ar mais respeitoso. Era esquisito, aquele velho lhe olhando do espelho. Não o reconhecia. Não cabia nos seus sonhos. Não se encaixava no menino que ainda lhe restava.

Pernas cansaram. Mas quem lhe passou a perna foi o coração. Justo aquele que sempre fora tão conselheiro. Talvez até por isso. Bateu tão forte que saiu do ritmo. Bandido! Não era hora! Faltava ainda tanto por descobrir....

Naquela hora do ajuste, ainda meio sem entender, corpo pouco a pouco sendo desligado, ainda conseguiu em um momento de lucidez longínqua escutar uma voz que dizia ansiosa e esperançosa ao seu lado:

....e livrai-nos do mal, amém 



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